20 de jul. de 2009

Sobre o nono ano de gestação


Filho


Quando nascer meu filho,
Seu brilho será
De um intransitório
Transe histórico, gatilho.

Empecilho? Qual o quê;
Descarrilo do avesso.

Hei de vê-lo arrancar do mamilo
Aquilo que lhe servirá de lenha e trilho.
E a assim, além de trilho e lenha,
Pra mim, será, o filho, contrassenha.

7 de jul. de 2009

Autopsicografia #9





Atrás da vida pra poder morrer,

Eu tô me despedindo pra poder voltar.

(Tom Zé & Élton Medeiros)

6 de jul. de 2009

Sobre tatuagens esferográficas


Apresento-lhes um pequeno conto de minha autoria:

Um dia, uma gestante tentou receber atendimento no maior hospital de sua cidade.

O caso era grave e exigia internação imediata.


Um médico, canudado (um viva aos ubaldianismos autorreferentes nossos de cada dia), orientou a gestante a procurar uma maternidade, fazendo-lhe, inclusive, o inestimável favor de escrever-lhe no antebraço o nome da maternidade e as linhas de ônibus que a levariam até lá.

A gestante entrou no desconfortável ônibus e, ao chegar em seu destino, constatou que seu filho havia morrido. Tremenda ironia linguística ter morrido seu filho justo no caminho entre o hospital e a maternidade, pois a maternidade - a que se constrói com sonhos, não com tijolos - o próprio caminho lhe havia arrancado, ora sendo a gestante forçada a tomar outro caminho, de volta ao hospital, uma vez que maternidade de sonhos já não mais havia e de tijolos não mais carecia.

Quando questionado sobre o caso, o prefeito da cidade respondeu, categoricamente, o que temos que fazer é... punir.

Claro, nada mais havia a fazer. Nesta cidade todos os cidadãos tinham acesso a tudo que era público. Havia fartura de litros de leites, leitos e letras, menos de lutos.

Sobretudo ali, onde a gestante
solicitara atendimento de emergência, havia abundância de vagas, obstetras, ambulâncias e maternidades. Afinal, era o maior hospital da cidade.

Logo, concluiu-se que a morte da maternidade da gestante só podia ser resultado de uma peça pregada pelo espirituoso médico a se valer do raro artigo da ignorância alheia. Pobre médico, só quis testar sua caneta nova.

Gostaram do conto? É claro que é ficcional...

Não pela "cidade-pública", inspirada em algumas que conheci um pouco mais a norte.


Mas só mesmo a literatura fantástica para imaginar uma trama como essa.

A cobra não morde uma mulher gestante
Porque respeita seu estado interessante

(
Nelson Cavaquinho & Guilherme de Brito)

28 de jun. de 2009

Sobre canudos


Há alguns dias eu sou oficialmente graduado em... nada.


Não que isso seja uma novidade, já que o diploma que me faria bacharel perante os tribunais ainda está lá, rodeado de outros tantos diplomas, abandonados como ele, em um arquivo morto de uma universidade privada.

De qualquer maneira, confesso que me causa uma ponta de decepção saber que esse diploma, se fosse útil a mim, não o seria mais à oficialidade do meu país.

Eu sou jornalista. E fiquei satisfeito com a decisão do Supremo.

Sou jornalista porque escrevo, porque faço de minhas músicas crônicas. Não seria mais ou menos jornalista por ter comigo o abandonado canudo a que tenho direito. Por isso fiquei satisfeito com a decisão do Supremo.

Entretanto, preciso despir-me por completo de qualquer hálito jackbaueriano. Os fins não justificam os meios, e essa é uma decisão que segue à risca a rara tradição da boa política do país: correta nas consequências, espúria nos argumentos e pífia no debate e na consulta pública de que se cercou.

O que mais se ouvia dos ministros que derrubaram a obrigatoriedade do canudo é que o exercício do jornalismo não exige conhecimento técnico e não oferece perigo à coletividade, ao contrário de profissões como medicina e engenharia.

Depois de ouvir tamanho desdém, lembrei-me de três casos largamente noticiados na imprensa do Brasil - pelos então bacharéis em comunicação social com habilitação em jornalismo:

1 - O caso do edifício Palace II
2 - O caso do cardiologista privado do SUS
3 - O caso Escola Base

Nos dois primeiros, meus nobres colegas eram testemunhas. No terceiro, protagonistas.

Para refrescar memórias:

Sérgio Naya, ex-deputado federal, era dono de uma dessas empreiteiras que financiam campanhas e, curiosamente, conseguem liberações para construir em áreas de proteção ambiental e afins. Construiu o edifício Palace II, superfaturando a obra que viria a ruir, matando algumas pessoas e lesando materialmente outras tantas. A empresa de Naya era legal e contava, obviamente, com engenheiros devidamente canudados;


Doutor Rimmel Gúzman era cardiologista do Serviço Único de Saúde, maior rede de saúde pública do mundo e, supostamente, motivo de orgulho para todos nós, brasileiros. No Hospital da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, onde trabalhava, cobrava, em média, 200 reais por consulta, ignorando o fato de o Hospital ser exclusivamente de atendimento público. Doutor Gúzman era devidamente canudado;

A Escola Base, em São Paulo, ficou famosa por ser o centro de um suposto escândalo sexual, noticiado - e condenado - largamente pela imprensa antes mesmo de um veredicto judicial. O inquérito foi arquivado por falta de provas, mas a escola foi julgada culpada por seus vizinhos que, incitados pela abordagem da imprensa ao caso, saquearam e depredaram seu prédio, além de terem agredido os réus. As reportagens foram conduzidas por jornalistas devidamente canudados.

Os veículos que julgaram publicamente a Escola Base continuam sendo lidos Brasil afora. Os repórteres que derrubaram a reputação da Escola continuam exercendo a profissão de jornalistas, enchendo linguiças sem trema e preparando obituários de véspera.

Sérgio Naya morreu algum tempo atrás em Ilhéus, onde gozava da liberdade por ter sido absolvido da acusação - comprovada por inúmeros laudos técnicos. Ele pretendia construir shoppings na cidade baiana.

Rimmel Gúzman foi afastado do cargo à época, e não se tem certeza se chegou a perder seu registro médico. Ou seja, pode estar extorquindo pacientes em outro rincão ou gerenciando uma agência lotérica aberta com os dividendos do assalto que promovia.

Posto isso, a função do jornalista tem uma responsabilidade social tão grande como a do engenheiro ou do médico. Se o prédio da Escola Base tivesse ruído não teria tanta repercussão. Se a Escola Base fosse um posto de saúde público e cobrasse consultas não teria tanta repercussão.

A queda da obrigatoriedade do diploma é um bode espiatório político-panfletário-anti-ditatorial, não fruto do intenso debate prático que a deveria ter precedido.

Agora, frente à impunidade latente e notória que há por aqui, demonstrada nos três casos supracitados, convém perguntar se não seria a hora de deliberarmos sobre a obrigatoriedade de diploma para o exercício da JUSTIÇA.

24 de jun. de 2009

Sobre origens e destinos


Fica o silêncio depois da música e depois do sermão, que importa que se louve o sermão e aplauda a música, talvez só o silêncio exista verdadeiramente.


(José Saramago)

16 de jun. de 2009

Sobre o vício da retórica


Não é que eu seja do contra;

Sou apenas mais um salmão na foz do rio do mundo.

12 de jun. de 2009

Sobre tudo menos samba


Longe de Shakespeare e perto do universo de onde não vim mas onde vivo, me impressiona a capacidade que as coisas têm de, como se fossem ímãs, cercarem-se do que não são conforme passam os anos e gira a roda.


O próprio Shakespeare, hoje, quando lido, recitado ou representado, ganha inexplicáveis ares de sofisticação, apesar de ser coloquial em forma, conceito e linguagem, à época, aquilo que escrevia.

Não é a toa que é dele a frase-conflito mais parafraseada da história da humanidade, repleta que é de simplicidade e complexidade. Pois bem, Mr. Shakespeare, faço minhas as suas, não sem uma pequena transbordação (Ubaldiana) casuísta:

To be or not to be... sambista, that is the question.

Já tive mais problemas com esse dilema - não o de fazer e viver do samba, mas o de autorreferir sambista - mas aos poucos percebi que ele é tão eterno quanto inútil.

Inútil porque falamos do samba que um dia lutara para simplesmente deixar de ser ilegal e que se tornou a maior representação cultural de um país da dimensão do nosso, mestiço como é o nosso. Esse mesmo samba hoje responde a uma casta (hare baba!) a determinar quem leva seu nome como ofício ou não. Casta essa que eu admiro muito e de cuja existência reconheço o caráter indispensável. Mas agradeço aos céus - ecumenicamente - por não pertencer a ela, muito menos ao grupo dos que merecem dela o que considero ser apenas um rótulo.

Não quero pertencer e não pertenço a esse grupo porque não sou puro o suficiente para ser de nenhum grupo. Um indivíduo é aceito num grupo não por escolher fazer parte dele, mas por escolher invariavelmente não fazer parte de nenhum outro grupo. Há indivíduos, como eu, que preferem aceitar grupos do que ser aceitos por eles.

Me conforta um pouco saber que, mesmo entre sambistas com esses maiúsculos, não há consenso sobre o próprio samba, que samba, ele próprio, entre exibir-se orgulhoso à duquesa de Kent no Itamaraty e agonizar frente às outras culturas que a fidalguia do salão lhe impõe. Claro está apenas, na minha cabeça, que o samba diz menos respeito à tradição do que à subversão, seja sendo conservador, seja sendo revolucionário.

Eu acho que o samba basta. Mas eu tenho arrepios quando vejo o samba dizer que se basta.

Por isso tudo eu não atrevo a dizer do que é feito, ainda que eu ouça delicada e atentamente, todos que se atreverem.

Afinal, é tudo uma grande invenção.

30 de abr. de 2009

Sobre o porco louco


Eu tenho um melhor amigo argentino. Pra que fique claro, mesmo com a infeliz construção da sentença, não apenas o melhor entre meus amigos argentinos mas o argentino entre meus melhores amigos.


Um dia, no auge da gripe aviária, à época temida e já caminhando a firmes passos para a incontrolabilidade (parafraseando meu xará Ubaldo, não no termo, mas no que se segue a ele: perdoem-me), meu melhor amigo argentino me ofereceu um dólar pra cada pessoa que morresse a partir de então em consequência da proto-pandemia (ops!) anunciada. Imaginei que meu melhor amigo argentino teria problemas para me pagar a pequena fortuna a que eu teria direito, conquanto não fosse, eu mesmo, uma das vítimas galináceas.

É provável que ele me deva uns poucos dólares, um montante sem expressão - a não ser que se o converta em pesos, com o perdão da infâmia - mas nunca fui cobrar a tal dívida, um pouco por preguiça de consultar os números oficiais e muito por perceber, ainda que de maneira tardia, que o desafio era simbólico.

Hoje, como eu já esperava, meu melhor amigo argentino me ligou ofrecendo um dólar para cada óbito em consequência da gripe suína, a contar a partir do 500º, digamos assim, uma margem de segurança.

Caso eu sobreviva à pandemia, de maneira nenhuma eu porco, digo, perco:

Cenário 1 - Controla-se a gripe, salva-se a humanidade, e meu melhor amigo argentino guarda seus dólares para uma nova lua-de-mel no Caribe;

Cenário 2 - Morrem milhares, milhões de pessoas, o planeta aproveita o peso (não o argentino, aquele que se mede em toneladas) que se lhe tiram das costas, e eu fico rico às custas de um pobre melhor amigo argentino.

Nesse ínterim, continuo procurando alguém que me ofereça um dólar por cada pessoa que morra em consequência da maior doença do mundo: a fome.

Segundo a ONU, 25 mil pessoas morrem de fome por dia e quase um bilhão de pessoas não come o número de calorias necessário a uma pessoa adulta para que se mantenha saudável. Um salário de respeito, 750 mil dólares mensais.

É de se questionar, posto isso tudo, porque não se comovem os jornais, as tevês, os especialistas, as populações, enfim, a parafernália, frente a circunstâncias tão desoladoras e a perdurar por tanto tempo.

Com a sabedoria exclusiva das mães, decreta minha Rainha: a fome não é contagiosa.

O jantar está servido.

20 de abr. de 2009

Autopsicografia #8





I'll send an S.O.S. to the world...
I hope that someone gets my message in a bottle.

(Sting)

Sobre o que é responsabilidade


Como se não bastasse responsabilizar o usuário pelo tráfico, o tubarão pelas pernas que abocanha e o pobre por continuar sendo pobre, ontem, saindo do Maracanã - um tanto cabisbaixo, confesso, conquanto o destino do mundo ainda esteja por se decidir - fui testemunha de uma das mais espetaculares distorções de que se tem registro.


Sou Botafogo, sempre fui, sempre serei e, por isso mesmo, meus sentimentos arquibáldicos são, digamos assim, calejados. Sofro sim, choro também, mas meu mau humor dura coisa de horas, não mais que isso. Mas essa cena, protagonizada por um pai, um filho e um policial militar (oxalá fosse um espírito santo), não me pareceu repulsiva por causa de minha condição de derrotado ou, muito menos, de aspirante a pai. Talvez de humano.

Às portas do Maracanã (traseiras, é claro, é a parte que nos cabe neste latifúndio), durante a descida do rebanho, abriu-se um clarão. Típico de saída melancólica, muito provavelmente um arrufo entre correligionários alvinegros sofrendo de cabeçaquentite aguda - não seria exatamente uma surpresa, entretanto, se a balbúrdia fosse obra da tropa inimiga avançada, não satisfeita com a vitória, sedenta por sangue.

Pra mim, nada daquilo era novo. Depois de vinte anos de assiduidade, sei os atalhos e os procedimentos. Mas, um pouco adiante, lá estavam: o filho, no recolher das pálpeberas do arregalar dos olhos, assustado; o pai, abraçando o filho muito mais na intenção de parecer proteger do que de fato proteger (até porque o perigo ia longe e já estava um tanto maior dentro do menino do que à sua volta); e o espírito-de-porco-fardado, que, em um lampejo de suprema covardia, vociferou, dedo em riste, contra o pai, acusando-o de ser... irresponsável.

É, há de ser irresponsável o pai que leva seu filho para um evento cuja censura é livre, cujo fim é o esporte com tudo de bom que a palavra traz consigo, cuja intenção é fazer com que se aproveite, em família, as suadas horas de folga do abençoado domingo nosso de cada semana.

Em contrapartida, temos, na imagem desse bucéfalo da segurança pública, o exemplo-mor da responsabilidade, inoperante que é nas questões que o deveriam interessar (uma vez que interessam a quem lhe paga o salário, grupo do qual, curiosamente, fazemos parte eu, você, o pai e o filho), a dar sermões com ares de supernanny, não se importando que suas palavras, expressões e gestos, sirvam ao despróposito de aumentar a tensão de todos a despeito do arrefecimento da confusão original.

Aproveitando o ensejo, catuco novamente uma feridinha institucional: pra que e a quem serve uma polícia MILITAR?

16 de abr. de 2009

Autopsicografia #7





E agora eu era um louco a perguntar:

'O que é que a vida vai fazer de mim?'

(Chico Buarque & Sivuca)

15 de abr. de 2009

Sobre os pecuaristas de trem


Pessoas são tratadas como gado e ninguém se pergunta, afinal, se o próprio gado é tratado assim. Se o é, com o perdão da anti-redundância irônica, só mesmo as pessoas pra cometerem tamanha desumanidade: As pessoas agredidas feito gado podem fazer exame de corpo de delito, o gado agredido feito pessoas não.


Poucas coisas são tão difíceis de se registrar em vídeo como as manifestações corriqueiras da tal, bem observada, síndrome do pequeno poder. Pois bem, nesta manhã nos fizemos testemunhas da intestemunhável realidade diária de quem é leite desnatado - autorreferência não é crime.

Quem presta serviço a quem? Os sindrômicos, tão desnatados quanto os demais, se divertem com seu próprio sadismo injustificável enquanto os porta-estandartes se omitem e demitem, tão somente. A que preço se põe à venda uma dignidade coletiva?

Na cidade-maravilha-mutante coloca-se ar-condicionado e aumenta-se o grau de truculência em proporcionalidade inversa ao da temperatura.

Sabe o pior? É capaz de o pastor-chefe ser vegetariano.

Madureira chorou
Madureira chorou de dor
Quando a voz do destino
Obedecendo ao divino
A sua estrela chamou
Gente modesta
Gente boa do subúrbio
Que só comete distúrbio
Se alguém os menosprezar
Aquela gente que mora na zona norte
Até hoje chora a morte da estrela do lugar
(Só eu não posso chorar)

(Júlio Monteiro & Carvalhinho)

10 de abr. de 2009

Sobre o desenvolvimento humano


Por que se levar tão a sério? Qual a razão de tamanho medo do ridículo?


É tentador imaginar que a ridiculez é transitória. Quando olhamos pro passado e nos enxergamos patéticos, quase nunca temos a perspicácia de que ainda nos reconheceremos patéticos quando nos observarmos de um ponto de vista futuro.

Os otimistas dirão que essa é a razão da obsessão por crescer, melhorar, improve. Eu direi: não há como escapar, somos todos ridículos. Sempre seremos absolutamente ridículos.

Alexandre, o Grande, é ridículo tanto em Hollywood quanto numa aula de história do ensino médio.

Miró com seus rabiscos, Hitler com seu bigode, Getúlio com seu metro-e-meio, Napoleão com seu cavalo branco, Marley com seus piolhos, todos apaixonadamente ridículos.

E assim seremos, sucessivamente, um pouco menos que ontem, um pouco mais que amanhã, até que, enfim, alcancemos a magnitude da espécie, o derradeiro desapego da velhice, quando, afinal, nada disso mais faz sentido e, em não sendo ridículos tanto quanto não-ridículos, apenas somos.

9 de abr. de 2009

Sobre o mal


Sempre achei que as pessoas se dividissem em dois grandes grupos: os pernósticos e os dissimulados (afora os loucos, é claro).


Minhas obrservações recentes me levaram à constatação de um terceiro grupo, discreto e com assustador coeficiente de crescimento, o grupo dos covardes.


A patologia da covardia acomete em progressão geométrica policiais, políticos, banqueiros e até motoristas de ônibus. Às vezes se manifesta na forma convulsiva psicopática, flagrante nos casos Fritzl, von Richthofen, Nardoni e em tantos outros, mas é nas pequenas demonstrações diárias - em muitos casos confundidas com a já bem observada síndrome do pequeno poder - que explicita, através de seu receptáculo humano, a verdadeira face da crueldade. Tem especial predileção pelos chamados "países em desenvolvimento".

A covardia é o mal. É o mal maniqueísta, o mal cristão, o mal que a oração não redime.

Prazer, me chamo João e sou pernóstico, dissimulado E LOUCO.

7 de abr. de 2009

Autopsicografia #6





Gonna keep on tryin'...

'Till I reach the highest ground.


(Stevie Wonder)

Sobre o arrepio


Ontem, pela primeira vez, escutei o coração do meu filho.


Por mais que me tentem convencer de que eu já o ouvira, percebo agora que não há estetoscópio, doppler, ou qualquer outra parafernália tecnológica capaz de reproduzir o coração do filho que se ouve com o coração do ouvido - ou com o ouvido do coração.

Quando ouvi de minha mulher "ah, isso eu não consigo", pensei, cá com meus botões, que apesar da frustração de não engravidar, não amamentar e, sobretudo, não ver de si nascer o filho, o pai tem o privilégio único e mágico de ouvir com o coração do ouvido o apressado coração daquele precioso pedaço seu.

Foi o maior arrepio até aqui.

Acho que arrepio maior que esse, só quando eu estiver lá, vendo minha Rainha dar a luz (assim mesmo, sem crase).

3 de abr. de 2009

Sobre ser chique


No mundo de onde venho aprendi que de nada me servem os dividendos da conquista se, do alto do Panteão dos vitoriosos, eu não puder exibir orgulhoso a dignidade do processo.


Alguns chamam a isso Ética, outros não.


O fato é que eu não estou pronto pra ver o mundo, melancolicamente, se desapegar do livre mercado, enojado que está do frenesi do consumo. Sou um romântico, e no anacronismo da minha cabeça acreditava nas Revoluções.

Finanças em concordata e há um ex-camarada disposto a emprestar dinheiro à Daslu do mercado financeiro. Há de se ter encurtado sua memória, posto que passara uma encarnação bradando aos ventos o quanto de vida lhe fora sonegado pelo próprio credor de outrora, hoje a emprestar fiado.

Companheiro, aproveite o espetáculo e não espezinhe deles. Não é do nosso feitio. Chique é erradicar a fome.

1 de abr. de 2009

Autopsicografia #5





Tanta coisa que eu tinha a dizer...

Mas eu sumi na poeira das ruas.


(Paulinho da Viola)

28 de mar. de 2009

Sobre o apagão


Nada seria melhor pra humanidade do que uma hora de reflexão coletiva.


Uma hora pra que o mundo inteiro, do subordinante ao mandatariado, se desligasse da parafernália e se religasse com sua sublime condição de bicho.

Sem luz, sem cultura, sem comunicar-se com ninguém, a não ser cada um com os de seu próprio ninho, com seus próprios demônios, com seu próprio deus.

Em vez disso, a cartilha promove um espetáculo de luz e sombra que segue a rota convencionada dos fusos-horários pra que satélites nos façam testemunhas do "espetáculo".

As pessoas? Continuam imersas nas suas individualidades sociais microcomputadorizadas e distantes da coletividade da espécie, animais que são. Salvo, é claro, as que de fome morrem aos poucos, essas não esquecem que são bicho.

Por via das dúvidas apaguei as luzes do meu apartamento.

26 de mar. de 2009

Autopsicografia #4





Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso...

É disso que eu preciso ou não é nada disso?

Eu quero é todo o mundo nesse carnaval.

(Sérgio Sampaio)

25 de mar. de 2009

Sobre meus pais


A pedido da revista Pais & Filhos, escrevi esse texto sobre meus pais. Acho que resume bem o que sinto, por isso publico aqui. Aliás, escrever sobre as coisas já me poupou alguns muitos anos de análise. Ah, não Freud!

Meus pais são da geração que se orgulha de ter feito o que quis, na hora e do jeito que quis. Quiseram, aos meus 4 meses de idade, se separar, e eu cresci sem jamais me referir a eles como “meus pais”.


Era, pra mim, minha mãe, meu limite, minha segurança, minha rotina; a pessoa com quem dividia a casa e as responsabilidades de sermos mãe solteira e filho de pais separados.


Era, pra mim, meu pai, meu ídolo, meu entertainer, meu paradoxo; a pessoa com quem dividia os fins de semana e a informalidade de sermos pai solteiro e filho de sábadomingo.


E era eu a sortuda criança com duas casas, dois natais, duas famílias, dois exemplos a seguir, ou não.


Com minha mãe aprendi o amor irrestrito. Morei com ela por mais de vinte anos, com poucos períodos de férias. Fomos felizes juntos, viajamos, sorrimos, brigamos, crescemos e aprendemos juntos com a leveza e a naturalidade de amigos que moram sob o mesmo teto. Só às vezes éramos mãe e filho.


Com meu pai aprendi a obstinação. Acompanhei de perto o calvário de um músico popular apostando em viver de cultura num país faminto de proteínas, não de metáforas. Nos víamos menos do que gostaríamos e muito mais do que era preciso para nos amarmos, com a transparência que há entre o espelho e o reflexo. Quase nunca éramos pai e filho.


Cresci com os exemplos de minha mãe e meu pai, um pouco absorvente, um pouco refratário. Flertei com o desenho e com a matemática antes de entrar para a faculdade de jornalismo. Me distanciava da música e meu pai não reclamava, era flagrante que ele não queria para o filho nem um décimo dos caroços que ele teve que engolir e eu não tinha ainda a convicção de que conseguiria colher nem um décimo dos frutos que ele colhera.


Ainda na faculdade me reaproximei da música, como um amante fortuito, sem nenhuma pretensão de casamento. O ofício de cantar, tocar e compor foi tomando espaço e quando meu pai percebeu, já era tarde. Com a prudência do pai e o conhecimento de causa do artista, ele decretou: “Se você consegue viver sem música, viva. Senão, mergulhe na música.”


Já são mais de 10 anos mergulhando de cabeça no mar sem fundo da música, e hoje tenho o prazer de ver meu pai sob o ponto de vista de filho e de fã como sempre vi, mas também sob o ponto de vista de colega de classe. Não à toa escolhi uma foto do mágico dia em que ele entrou de surpresa (para mim, o resto do mundo parecia já saber) no meio do show do Casuarina para cantar comigo uma música minha. A banana foi o gesto espontâneo para “reclamar” da deliciosa “traição” mas é a síntese do espírito subversivo e obstinado. Ela diz “aqui, pai, aprendi contigo.”


Com minha mãe escolhi a foto de um beijo. Um beijo antigo, um beijo eterno, o símbolo mais sagrado do amor que resiste ao tempo, ao convívio, a tudo. Já não moro mais com ela e hoje somos mais amigos do que nunca, despidos da aridez da vizinhança e munidos da doçura da saudade.


Seria uma tremenda injustiça se eu escrevesse um texto sobre pais e não dissesse que aos meus onze anos minha mãe casou-se com Toti, pai de minha irmã Jade, com quem morei por quase dez anos. Ou que desde que me entendo por gente meu pai é casado com Anninha, a boadrasta, mãe de meus irmãos Bruno e Bernardo e o maior exemplo profissional que tenho. Afinal, hoje digo, sem medo de errar: meus pais... e minhas mães.


24 de mar. de 2009

Autopsicografia #3





Nada de crachá, meu chapa.

Eu sou um escrachado, um extra achado num galpão abandonado.

Nada de crachá.

(Gilberto Gil)

Sobre a força


Dos que usam a força eu apenas rio:


Tem mais vento o sopro do que o assovio.

Sobre a classe média amedrontada


Noticiários em polvorosa. Hoje, no Rio, quem se assusta é a nata.


Sem chorar o leite derramado, é bem verdade.

Aliás, leite sistematicamente escondido por anos sob a gordura negligente da indiferença. Anos cozendo, a fogo baixo. Fogo baixo também ferve.

Caos, juízo final, nada além do que experimenta quem é leite, não nata, durante toda a vida.

Enquanto isso a coalhada da Segurança Pública acusa... a própria nata-do-leite-em-pó.

Claro: se a Baía de Guanabara é uma grande latrina, cada um é responsável pela bosta que faz.

Sobre "Labiata"




O texto que se segue é uma espécie de release que escrevi na ocasião do lançamento do último disco de meu pai. Digo "uma espécie de" porque, de tão comprometido - ainda que isento -, não se presta às objetividades impessoais da imprensa, mas é puro.


DEPOIMENTO ÍNTIMO


Um desavisado diria que meu pai trafega nas interseções. Entre a vanguarda e a resistência; entre o ruído e a pausa; entre o registro e a circunstância. Lenine não trafega nas interseções, ele as cria. Interseções de tudo que ele incorpora nas suas viagens, físicas e metafísicas mundos afora. Sempre munido do espírito-esponja que retém o que lhe interessa de tudo que absorve.


Absorvido, pois, vinha sendo Labiata, que meu pai agora espreme e exprime de si – e das esponjas de que se cerca. Labiata é o álbum-dilema de quem vive à moda esponja: uma peça pronta, complexa e sólida de um quebra-cabeças em aberto. Um íntimo atestado da continuidade do ineditismo.


São íntimos Guila, Pantico e Jr. Tostói, com Lenine nos palcos há bastante tempo e em quase todas as faixas de Labiata. Tostói, inclusive, divide com ele a produção do álbum e imprime uma nova palheta de timbres à mistura. São íntimos os parceiros-esponja Arnaldo Antunes, Bráulio Tavares, Carlos Rennó, Dudu Falcão, Ivan Santos, Lula Queiroga e Paulo César Pinheiro. E como são íntimas a inédita parceria com Chico Science e a inédita presença de China, herdeiro direto da subversão estética scienciana


O álbum é, portanto, a devassa consequência da intimidade do processo. Um álbum andrógino, viril e delicado, a exemplo da orquídea que lhe empresta o nome. As orquídeas, aliás, mais exclusivas das flores, são um enigma entre o estigma incauto da promiscuidade do que brota em toda parte e o deslumbre do que encanta à primeira vista. Meu pai tem verdadeira obsessão por elas. Não é por acaso.


Labiata martela anseios, sonha deusas esguias, cirandeia romances, relativiza céus, samba mundos e cria eus. Mas um álbum com nome de flor não podia omitir-se diante da tragédia anunciada. Grande parte do disco é dedicada a engrossar o coro da perspectiva da catástrofe. Não a sonhada por Hollywood, de aniquilação imediata e indolor, mas a hecatombe silenciosa da negligência. A mensagem, entretanto, não é niilista – ainda que seja punk.


Enfim, o novo álbum de estúdio de Lenine, primeiro desde Falange Canibal (2002), é, a meu ver, um recorte de seu tempo. Labiata é perfumado. Labiata é contundente. Faço minhas as palavras, faço meus os sons. Faço parte, ao lado de meus irmãos Bruno e Bernardo, na emblemática “Continuação”. A genética só me credencia ainda mais a dizer tudo que disse com a insuspeição de quem acumula o prazer de ser tão filho quanto fã de Lenine mas, ao mesmo tempo, orgulha-se de pensar ter herdado uma das maiores virtudes do pai: o critério.

João Cavalcanti


23 de mar. de 2009

Autopsicografia #2




It's up to me, Coração:

Ser,
Querer ser,
Merecer ser um camaleão.

(Caetano Veloso)


Sobre a hipocrisia


"Lembra de mim?"


Não há outra circunstância que ilustre melhor minha tese: mentir é uma virtude.

"Não, não lembro.": Antipatia ou franqueza?

"Lembro, lembro sim!": Falsidade ou amabilidade social?

Nas pequenas hipocrisias cotidianas, dos padres pedófilos, dos atletas dopados de cristo, dos pacifistas drogados, está a essência da convivência. O verdadeiro espírito comum.

Não à toa, uma mentira desarmada é capaz de expor, nua, a alma do mentiroso. É o retorno às profundezas.

Justamente por isso, caros correligionários hipócritas, espero que não se siga:

"De onde?".

22 de mar. de 2009

Autopsicografia #1






Un enjambre de moléculas puestas de acuerdo de forma provision
al...

(Jorge Drexler)


21 de mar. de 2009

Sobre por que eu não fui ao show de Radiohead


Eu gosto de rock. Eu gosto muito de Radiohead. Mas eu não fui ao show.


Sim, eu queria ir.

Não, eu não sou obrigado a não gostar por não ser samba.

Mas jamais imaginaria que não ir acabaria sendo tão importante.

Hoje, tendo não ido, percebo: minhas prioridades mudaram


Eu somos uma família.

Estréia


O título da primeira postagem do primeiro blog que me disponho a escrever na minha vida é um emblema.

Um grito de libertação ortográfica.