27 de set. de 2013

Sobre um Gosto Amargo



Houve um tempo em que o subúrbio, esse que tem Jesus mas está de costas, não era pauta. Não era consumível, não era consumidor. Não era assunto. Tinha lá seus hábitos (porta aberta, cadeira na calçada. Graças a Deus!) que eram ignorados pelos "remediados do além-túnel". Eu entre eles, diga-se.

O subúrbio cresceu. Geográfica e economicamente. E, como era de se esperar, a formalidade institucional deixou de dar de ombros e passou a crescer os olhos praquelas bandas. Pelos potenciais proveitos, não por anseios inclusivos, é claro.

Ainda assim parecia bom.

Mas, como era de se supor, a moral central é avassaladora. Ignora vicissitudes, ignora culturas, ignora a diversidade. Não importam as distâncias, os seres-humanos ainda não conseguimos nos livrar da lógica colonialista-extrativista.

Dentro da dinâmica mercadológica de apropriação (expropriatória) da linguagem do subúrbio, o Deus neopentecostal, espécie de endemia suburbana, embranqueceu, enriqueceu e ganhou representação política.

E, o mais incrível, foi esse próprio Deus que trouxe consigo, de volta ao subúrbio, munido de seu caráter emergente, sua retórica arrogante e sua falta de respeito para com o que lhe é distinto, uma série de preconceitos (criminosos) contra patrimônios culturais do próprio subúrbio. Com o endosso editorial escancarado dos barões.

Não sou irresponsável de estimular práticas, ainda que culturalmente estabelecidas, que ofereçam risco ou causem desconforto a outras pessoas. Claro que não. Sonho com uma comunidade em que se pense muito mais no espaço do outro. Mas o jeito paternalista, marginalizante e exclusivamente repressivo com que a oficialidade estado-mídia impõe suas vontades é digno de uma cidade ainda partida. Talvez ainda mais partida do que antes das UPPs e da Emenda 013.

Pois bem, assitindo o RJTV de hoje, percebi que o demônio já foi o cerol, o demônio já foi a cangalha, o demônio já foi o proibidão. Hoje não. Nesse dia de Cosme e Damião, estabeleça-se um marco anti-sincrético: o demônio ficou doce. Do-do-doce, doce.


3 de ago. de 2013

Sobre o Império da Guanabara



Não é o governador fascista, não é o prefeito playboy, não é o empreiteiro mafioso, não é o coronel corrupto, não é o miliciano sádico, não é o traficante infanticida, não é o inseto do transporte, muito menos o motorista ensandecido.

É o privilégio.

Façamos a mea culpa, nós cariocas somos viciados em privilégio. Eternamente VIPs, signatários de primeira hora da lei de Gérson. A regra para os outros, para nós os aplausos ao sol no Arpoador.

Abençoados por Deus, bajulados pelo Papa e privilegiados por natureza, somos o mais fértil terreno para os despachantes, as listas amigas e as carteirinhas falsas de estudante. Mesmo assim, nada disso nos interessa: queremos de graça.

E é por isso que aqui, no balneário do meu pirão primeiro, a classe política e a polícia militar - esses, sim, privilegiados por vergonhosas leis que os protegem da justiça dos demais - são assim tão debochados.

É urgente que tenhamos coerência. O momento é histórico mas de nada adiantará se não percebermos, olhando através de nosso próprio umbigo, que já não temos a corte.

Temos o corte.

Usemos.


3 de jul. de 2013

Sobre a Sociossismologia Empírica Aplicada



E se formos nós o terremoto?

Os governos, é claro, são as placas tectônicas. Às voltas com sua própria sensação de estabilidade, não estão especialmente preocupados em acompanhar a velocidade das vontades e das forças alheias a si. Às vezes se jogam uns de encontro a outros e eventualmente tremem sem saber por que.

O foco sísmico é feito dos movimentos sociais organizados. Têm a volúpia do ruído - jamais se permitem silenciar. Mas a repercussão do que dizem é uma incógnita: grande parte das vezes, seu desejo de mexer com as placas dispersa nos interstícios repressivos e burocráticos das próprias placas que, assim, os contêm com pouco esforço.

Os militaristas, moralistas e fascistóides, a pé, de carro ou caminhão, são uma falha, como a de Santo André. Prometem rachar a Califórnia mas bradam muito mais do que mordem. Ademais, seu ímpeto sanguinolento é mais hormonal do que coordenado.

O epicentro certamente é civil, desorganizado e, embora incomodado, esteve ocupado demais recentemente com seus afazeres superficiais para dar atenção aos atritos escondidos nas vergonhas da crosta. De repente foi sacudido.

E as instituições são tudo o que fora construído sobre o solo. Quão mais firmes forem, mais firme resistem às vicissitudes das placas. Não importa se rachem, fissurem ou quebrem as rochas dos governos, as instituições bem construídas não se abalam. Por outro lado, mesmo onde as placas deitam eternamente em berço esplêndido é possível caírem rebocos de viadutos em cabeças inocentes.

Mas a beleza está unicamente no paradoxo de que só se ouvem os movimentos íntimos da Terra quando as súplicas fogem às entranhas e se propagam em difusas ondas de choque. No decorrer do caminho, aquele grito uniforme, concentrado, proposital e propositivo vai ficando mais alto, mais abrangente e menos inteligível - e é quando a intenção de reacomodar placas parece detalhe frente à capacidade destrutiva do sismo.

E só assim, com recorrentes tremores de legitimidade duvidosa, vamos destruir e reconstruir uma dúzia de vezes nossos prédios até que se perceba que precisam ser melhores e mais estáveis para que sobrevivam às egolatrias narcisistas das pedras.


3 de jun. de 2013

Sobre o Epitáfio de um Arquibaldo



Em 1994 o Brasil ainda reaprendia a engatinhar sob a luz da democracia. No dia 1º de março, exatamente trinta anos depois do golpe que prendera e torturara a república, mais um plano mirabolante para conter a inflação era implementado. Desconfiávamos, depois de tantos fracassos.

Se hoje não se admite 40% de inflação ao ano, em 1994 era 40% ao mês. O Cruzeiro Real, tão novo, já apodrecera. Seria transformado transitoriamente em URV (Unidade Real de Valor) para, por fim, em 1º de julho, dar lugar ao Real. A taxa de conversão não era simples: CR$ 2.750,00 = R$ 1,00. E tome calculadora atrás da orelha do padeiro.

Tinha eu 14 anos de idade àquela altura, e ia sozinho ao Maracanã (e ao Glorioso estádio de Caio Martins), desde os 13. Como eu nunca sabia quanto era o ingresso dos jogos lá ia eu, de ônibus - não havia metrô aos domingos -, com meu saco cheio de dinheiro.

Naquela quarta-feira de dezembro, entretanto, o Real já era real. Já sabíamos que o ônibus custava R$ 0,35. Ayrton Senna já havia morrido e causado a maior comoção já vista no país. Pouco depois, o Brasil foi tetracampeão e houve uma comoção ainda maior (com direito a um abraço de urso de Pelé em Galvão que entortaria pra sempre a armação de seus óculos).

O Botafogo, depois de uma campanha excelente, jogaria contra o Atlético-MG pelas quartas-de-final do Brasileirão. Ganháramos duas vezes deles durante o campeonato, mas um regulamento tosco, com repescagem, nos havia posto de frente novamente. O preço: exorbitantes R$ 6,00. Calculadora em punho, inflação domada, eu sabia que devia custar R$ 3,70. Mas o "efeito tetra" tinha inflacionado o futebol, pensei eu.

Fui ao jogo. Peguei um troco aqui, uma moeda lá e fui. Levei um sanduba de casa porque o valor da entrada não me permitia gastar R$ 0,50 no já clássico chugatinho-de-filé-miau. O Botafogo ganhou o jogo mas caiu pro Galo no saldo de gols - um infeliz chamado Éder tinha acabado com o jogo do Mineirão.

Ainda assim, esse jogo inauguraria um período de quase dois anos em que eu não deixei de assistir in loco a um jogo sequer do Botafogo no Rio. Fomos campeões em 1995 e eu vivi intensamente aquela campanha. Antes de sermos campeões, recuperamos nossa sede histórica de General Severiano e foi lá, na conquista do título, que tomei meu primeiro porre de uísque - com respaldo e patrocínio da minha mãe.

Quase vinte anos depois:

- O ônibus custa 3 Reais (mais de 700% de aumento, contra menos de 300% de inflação acumulada);

- O metrô custa um pouco mais do que isso e continua levando de lugar nenhum a nenhum lugar - agora também aos domingos;

- A inflação continua em pauta;

- O Rio tem um Engenhão que custou R$ 380 milhões (ou 1 trilhão de Cruzeiros Reais) e foi interditado por problemas estruturais menos de seis anos depois;

- O Maracanã consumiu três Engenhões (ou 3 trilhões de Cruzeiros Reais) em sua descaracterização. Em seguida teve seu lucro privatizado. Ainda assim parece não cumprir as exigências do COI e, provavelmente, vai passar por novas reformas antes das Olimpíadas;

- O prefeito acredita fazer parte do Clube da Luta;

- Minha irmã pagou R$ 170 (ou 467 mil Cruzeiros Reais) pela meia entrada de um jogo amistoso no Maracanã;

- O chugatinho foi proibido para favorecer os cartelistas do interior do estádio;

- E seis reais não compram nem água no "novo Maracanã".


Eu, que fui centenas de vezes ao Maracanã, fui expulso do meu habitat. Como tenho sido expulso da minha cidade, sistematicamente.

Se estivesse lá, arquibaldo que sou, teria vaiado a seleção ao final do jogo, cumprindo meu dever cívico de torcedor-cidadão. Mas a vaia não é bem-vista no novo Maracanã e nos nossos novos protocolos de futebol elitizado - europeu no custo, jurássico no serviço.

Ah, que belo balneário. Pena ter sido arrendado e não aceitar mais índios como eu.


22 de mar. de 2013

Sobre a Teoria da Relatividade



Não faço parte do grupo dos que matam. Se quando criança não fazia parte do grupo dos que batiam, não haveria de me tornar parte do grupo dos que matam. São cruéis os que matam, eu não.

Se bem que mato as formigas que sobem pelos meus braços. Mato afogadas as que chafurdam nos restos da louça suja. Os mosquitos, quando não eletrocutados em uma espécie de tênis macabro, mato aos tapas - e aproveito para dar vazão aos meus mais profundos anseios autoflagelativos. Baratas eu prefiro matar com armas químicas. Baratas têm entranhas demais. Só as mato quando invadem meu espaço e, ainda assim, apenas por não tolerar tê-las por perto. Quando as vejo pela rua, tenho mais repugnância de suas entranhas em minha sola do que delas próprias. Moscas eu gostaria de matar com crueldade, mas moscas são ágeis.

Vou reformular a mim mesmo, pois: Não faço parte do grupo dos que matam, mas admito abrir exceção aos insetos que transmitem doenças ou põem em risco a minha saúde e de minha família. É legítima defesa.

Se bem que agora há pouco, enquanto tomava banho, vi uma aranha. Daquelas de corpo miúdo e pernas desproporcionais. Talvez por reflexo, não sei, talvez por maldade, juntei as mãos, enchi de água e joguei na aranha com força. Ela virou um desenho no azulejo. Uma caricatura de aranha. Num lapso de razão, no momento seguinte me arrependi de ter feito isso à aranha. Aranhas não são insetos. E não transmitem doenças. Pelo menos não as miúdas de pernas desproporcionais. Não mais de dois segundos depois - o tempo de um remorso de aranha - lá estava eu, novamente entretido com os afazeres do banho. Enquanto enchia a mão com xampu anti-caspa, uma janela remissiva de remorso me fez voltar os olhos novamente para a aranha e, para minha surpresa, ela voltara a andar, sem sinais de seqüela. Fiquei aliviado. Aranhas não transmitem doenças, aliás, aranhas miúdas de pernas desproporcionais não transmitem doenças. Elas só aproveitam o resquício de umidade que preservamos do espaço que era delas, originalmente.

Mesmo não a tendo matado, devo admitir: houve dolo. Não é lesão corporal, é tentativa de homicídio. E qualificada pela crueldade e pela impossibilidade da vítima de se defender. Posto isso, autoreformulo-me novamente: Não tenho pudores em matar invertebrados.

Se bem que tenho apreço pelas borboletas. São lindas, graciosas, coloridas. Até o jeito desengonçado de voar das borboletas me parece agradável. Não digo o mesmo das mariposas, ainda que não as mate. Mariposas são cinzas, quem quer que as tenha desenhado, mudou o modo do desenho para grayscale e concordou com discard color information. E são noturnas, e são lúgubres as mariposas. Mas não as mato. E admiro suas primas solares, as borboletas. Apenas depois de deixarem de ser lagartas, é claro.

É, não posso generalizar. Não sou um assassino indiscriminado de invertebrados.

Se bem que adoro comer lulas, polvos, mexilhões, caranguejos, lagostas e camarões. E, salvo engano, crustáceos e moluscos também são invertebrados. Faz muito tempo que deixei a escola, mas acho que são, sim. Não os mato pessoalmente, mas os como. É como se fosse eu o pretexto pra que os matassem. Um cúmplice com pudores pra matar mas muitíssimo disposto a se refastelar com o produto da matança.

Antes de revisar novamente a definição de homicida em que melhor me encaixo, preciso confessar que não me alimento apenas de vegetais e invertebrados. Como, com prazer e freqüência, peixes, aves e até mamíferos. Talvez eu esteja precisando de uma pequena dose de auto-indulgência. Não posso ser cúmplice dessas mortes apenas pelo fato de terem como consquência e produto essas carnes que devoro. Faço uso de um dos argumentos-chave da ideologia corrupto-burguesa: se eu não comesse, alguém comeria.

Certo, careço de pudores para matar - ou me deliciar com a morte, o que é praticamente a mesma coisa - quase qualquer animal silvestre ou criado com o específico fim de alimentar a mim e aos meus. Nunca toleraria matar animais domésticos.

Se bem que já tive que sacrificar um cachorro. Por mais que minha opinião sobre eutanásia não esteja formada, sou o mandante dessa morte. Não houve sofrimento, foi uma morte serena e em tempo mas, de fato, não aceitamos eutanásia para pessoas, porque aceitamos para cães? Diga-se ainda que pessoas têm a seu serviço a consciência e a linguagem, que permitem a elas expressar, voluntária e objetivamente, o desejo de morrer. Pra piorar meu próprio veredicto, confesso que comi cavalo defumado no interior da França. E gostei.

Mesmo sem ter certeza quanto à minha responsabilidade nessas mortes todas, mesmo sem saber ao certo se sou um assassino frio de artrópodos, moluscos, aves, peixes e mamíferos - domesticados ou não -, posso afirmar, sem medo, que não mato pessoas. Pronto, agora tenho um grupo que me representa, o dos que não matam pessoas. 

Se bem que, levando-se em consideração que a responsabilidade pela morte não está ligada de forma sine qua non à ação de matar, como controversamente demonstrado acima, acabo por ter minhas dúvidas.

Vivo em um mundo em que se morre de fome. Se morre de sede e de calor. Se morre de uma nova enchente antes mesmo de se poder parar de morrer aos poucos pela enchente passada. Se morre de faca, se morre de bala, se morre de míssil. Coronel Mostarda com o castiçal na biblioteca. Se morre de doença que uma gota preveniria. Se morre de tédio e de desgosto. Se morre depois de tanto verbo. Se morre sem querer e se morre sem querer, querendo. E mesmo se morrendo assim, aos borbotões, eu não estava lá. Não estava lá pra desviar o Titanic, pra sabotar o Enola Gay, pra demolir os muros da boate e fazer o sol nascer mais cedo na Candelária. Não estava lá, estava aqui. Escrevendo sobre as mortes que promovi e sobre as que não evitei. Estava aqui, morrendo aos poucos.

E sendo cúmplice.


28 de jan. de 2013

Sobre o louco


Que venha o louco. Outro louco.

Não é de mortos, mas de loucos que carecemos.

E que, enquanto vivo, ele distribua amor e gentileza.

E que, depois de morto, continue nos ensinando, o louco.

Choro enquanto escrevo porque creio que virá o louco.

E porque creio que se há Deus ele é a vida da flor que nasce nos cacos do espelho.



Não há poesia que substitua a clareza prática das responsabilidades humanas. E a perplexidade não se cura, mesmo com toda a poesia que houver no mundo.