28 de out. de 2012

Sobre Heróis


Meu avô foi um meio de transporte. Rápido, seguro, estável. Me alfabetizou sozinho e bem cedinho, imortal que era. Não me levava a um lugar, preferia mostrar o caminho dos sonhos. Debruçados sobre Barsas viajávamos para onde queríamos de quantos mundos quiséssemos. E era de lá que víamos tudo, ao vivo e em cores: preto e branco.

Morreu de cirrose sem nunca ter bebido, porque tem coisas que só acontecem ao Botafogo.

Convivemos por oito anos e a impressão que tenho é que guardei apenas memórias suas até sua morte. Foi a figura central da formação do que eu seria até o nascimento dos meus filhos, figuras centrais da transformação que eu sofreria.

José Maria Cavalcanti de Albuquerque nasceu no Rio, em 27 de outubro de 1912. No mesmo dia, na mesma cidade, foi inaugurado o bondinho do Pão de Açúcar.

Que honra para o bondinho.


O grisalho com Garrincha, Amarildo e cia.
Com Didi, Quarentinha, Nilton Santos e cia.
À beira do campo, com Saldanha e a comissão técnica.
O herói.

12 de set. de 2012

Sobre o desfile cívico


Eu não acredito em países. Países são arbitrários. O Brasil, por exemplo, é um território qualquer, determinado, quase todo ele, por um acerto político e uma dúzia de assinaturas. O Acre não, o Acre foi comprado.

É claro que, conforme passa o tempo, vamos nos cercando de uma compreensão, ora cínica ora genuína, de que, por pertencermos a um mesmo país, partilhamos alguns interesses fundamentais que justificam nos sentirmos parte de um mesmo país. Mesmo quando outros seres desse país parecem nem sequer serem humanos, achamos que apenas nós, do mesmo país que eles, devemos julgá-los. Nosso sentido de país é severamente ferido quando um "filho da pátria", por mais bastardo que sejam (o filho e a própria pátria) é achincalhado além das fronteiras (imaginárias, quase todas) de nosso país.

A cultura, afinal, é o que nos torna mais patrióticos. Seja na forma como nos manifestamos artisticamente, seja quando escolhemos um esporte para praticar e um subseqüente jeito de praticá-lo, nos sentimos definitivamente um país. Em nome da identidade cultural de um país, ignora-se, inclusive, quantas diferentes identidades pode haver em 8 milhões e meio de quilômetros quadrados. Ignora-se, mais ainda, com quantas outras identidades de quantos outros arbitrários países, podemos nos identificar de forma autônoma - enquanto, na calada da noite, nos vendem de maneira compulsória outras identidades como sendo nossas.

Por isso tudo, sinto um desconforto frente a todas as manifestações injustificadas de ufanismo. Termos como "soberania nacional" e "pátria livre" me causam ojeriza, é inevitável. Não que eu seja, por isso, um mau brasileiro. Não passo incólume às conquistas, muito menos às mazelas desse meu país. Torço pro meu país. (Ora, torço avidamente pro Botafogo, também um não país ainda mais arbitrário e que também tem no front uns quantos cretinos - conheço alguns, inclusive.)

Agora percebam: à sombra desse "orgulho de ser brasileiro" se escondem nossos fantasmas paternalistas cristãos, responsáveis por não conseguirmos fazer desse nosso não país, de fato uma nação. Uma sociedade como a nossa, que tem o degredo, a chacina e a migração forçada por matéria-prima; a dissimulação e a corrupção por ingredientes fundamentais; e a vantagem sobre todas as coisas por objetivo., para se sentir - e de fato ser - uma nação, tinha que ser formada não por pessoas, mas por países.

Assim, nós, países, não confundiríamos Estado com religião. Poderíamos até ter predileção por alguma maneira de tocar em Deus - ou não -, mas jamais nos permitiríamos ignorar as demais, o que dirá desrespeitá-las.

Nós, países, sempre assumiríamos o preceito da reciprocidade em nossas políticas externas. A vantagem, se não for pra todos os países, simplesmente não é.

Nós, países, elegeríamos de forma democrática qual é a melhor entre as escolhas possíveis, suscetíveis que somos ao erro, e sensíveis que somos ao conserto.

E, sobretudo, nós, países, nos permitiríamos interagir, interdepender e interrelacionar com quantos dos 200 milhões de países que há nessa fronteira abstrata desse nosso não país quiséssemos. E com quantos entre os 7 bilhões de países que há nesta enorme Nação Humana conseguíssemos. Sempre respeitando a história e a importância de cada país, cientes que deveríamos ser da fragilidade volátil dos países que somos.

Pois há apenas uma certeza: países morrem.

20 de ago. de 2012

Sobre a cópia


Perceba que a música é uma linguagem. Os gêneros, sub-gêneros e manifestações específicas de cada região são como idiomas, dialetos, gírias. Um sistema complexo de comunicação que permite influências múltiplas, reinterpretações e até hermetismos - dos alquímicos ou dos inacessíveis, tanto faz.

Considere que, numa análise mais alegórica, a música pop surgiu como o Esperanto. Um idioma híbrido que assume uma parte dos signos radicais dos outros idiomas que o formam para se comunicar através de novas palavras, nesse caso rítmicas, poéticas, harmônicas e melódicas. Ao contrário do Esperanto, entretanto, que foi estruturalizado a priori, o conceito de música pop foi tornando-se uma abstração que se presta a determinar a posteriori aquilo que não se enquadra no estruturalismo formal dos outros idiomas. Não à toa, o Esperanto é um tentativa bem-intencionada e mal-sucedida, enquanto a música pop, em não sendo nada, apenas é.

Por não ser nada, não há muitas pessoas que a defendam. Há pouquíssimas pessoas que se autodenominam pop sem culpa e as que o fazem em geral são vistas com desconfiança por seus pares - ainda que muitos deles sejam músicos pop enrustidos, disfarçados sob uma máscara legitimadora qualquer entre as muitas disponíveis.

É claro que, sem o pop - agora não só a música -, não haveria os memes, essas células mínimas virais de comunicação que transcendem idiomas e que são tão fundamentais para o esteio sócio-cultural da globalização. É bom que haja signos além dos obstáculos. Dois pontos seguidos de fecha parêntesis viraram um sorriso. Um sorriso pop-multilinguístico. Sorriso não distingue idiomas.

Posto isso, quero esclarecer que nada tenho contra a música pop, até por acreditar que ela não seja. Meu primeiro disco solo, prestes a ser lançado, muito possivelmente será rotulado por alguns como… pop. E isso não me causa desconforto (não posso me incomodar com algo que não é, ora). Com o perdão do clichê, sou um entusiasta do multiculturalismo, da pluralidade e, sobretudo, da transigência.

Mas - e agora vem o objeto de fato desse devaneio -, antes de qualquer outra coisa, sou obcecado pela autenticidade. E, em um mundo pautado por interesses comerciais, é mais barato, mais fácil e mais eficiente reproduzir velhas fórmulas do que criar novas. Assim é feito com refrigerantes, com desodorantes. Assim vem sendo feito com a música. Desse jeito a música pop deixa de ser aquele balaio heterogêneo de não-outras-coisas para ser sinônimo daquilo que já foi testado, massificado e aceito incondicionalmente e que, por conveniência, será reproduzido à exaustão.

"Então temos que ser originais o tempo todo?", pergunto-me. Claro que não. Mas não seria nada mau se tentássemos sê-lo. Na qualidade de músico/jornalista, acredito que o artista deveria buscar ser original como o jornalista deveria buscar ser verdadeiro. Ainda que a originalidade e a verdade sempre estejam filtradas, uma pelo que já absorvemos, outra pelas teses que defendemos. Eventualmente copiamos e mentimos sem querer.

E quando copiamos por querer?

Ninguém se incomoda se o funk-hit-coringa que se reproduz incessantemente às nove seja absolutamente igual a um outro em que o cantor maria-vai-com-as-outras só dançaria se sua musa fizesse o mesmo. Ninguém percebe que, na era pós-Tchan, se você quiser um tchu; quiser um tcha; quiser um tchu tcha tcha tchu tchu tcha tchuru e, em seguida vier o Gustavo Lima com você tcherêrê tchê tchê tcherêrê tchê tchê, você terá um canção, apenas. Ou finge não se incomodar. Ou finge não perceber. Ou, ainda, percebe e se incomoda, mas expõe para uma dúzia, enquanto as percebidas e incômodas reproduções comunicam com milhões através de emissoras de rádio e televisão que, embora públicas, vendem o espaço que lhes concedemos.

E seguimos, medindo nosso progresso pelos números da economia. Nossa educação através de IDEBs, ENEMs e afins. Até porque senso crítico não se mede. Não se avalia. E, pior: pra efeito de mercado, não se deseja.

5 de abr. de 2012

Sobre o Nada



Às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão. Convém dizer que, em geral, de fato estão. Mas não me refiro ao idioma-ferramenta de que faz uso o mundo inteiro e sim à expressão idiomática que sugere a ininteligibilidade de uma mensagem. Lima Barreto até tentou, mas enquanto o javanês não serve a tal propósito, às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão.


Pois bem, a comentarista, bem brasileira, falava em alto e bom grego que - repare a ironia - devíamos comemorar por ter a Grécia escapado de uma debandada maciça dos especuladores internacionais ao aprovar um pacote ultrarreacionário de austeridade monetária. Pela tese, o arrocho evitou o calote, que evitou a exclusão do país da zona do euro, que evitou uma recessão ainda maior na UE que se alastraria mundo afora tornando ainda mais fedorenta a já apodrecida economia mundial (na prática o calote foi apenas substituído por uma moratória consentida, mais comportada e elegante, mas não conte pra ninguém).


A tese, por si só, tem um alto nível de greguicidade já que ninguém sabe ao certo como se comportam essas gigantescas e nebulosas instituições do mundinho das finanças. Mas o que me chamou a atenção foi a notícia por trás da tese: um aposentado grego, falido e mal pago depois do anunciado aperto, decidiu se matar, deixando claro em um bilhete que o faria por não admitir catar comida no lixo.


Ou seja, a despeito do suicídio do aposentado, temos que comemorar. Comemorar porque o governo grego sentou o sarrafo no seu próprio povo duas vezes, ao aprovar o tal programa de austeridade e ao reprimir violentamente as manifestações contrárias a ele, aplacando assim a voracidade dos credores da Grécia e adiando um pouco a inevitável bancarrota do país. Ora, temos ou não temos o que comemorar?


Ignora a comentarista, e parecemos ignorar todos que o credor não tem rosto. O credor não tem nome. É tudo uma abstração, o dinheiro, o empréstimo, o calote. Até a Grécia é uma abstração. E, afinal, no frigir dos ovos, não seríamos apenas um grupo de pessoas produzindo, deliberando e decidindo para si, desde o início? Devemos a quem e por que razão devemos? Não sabemos. O aposentado tinha rosto. E nome.


A ironia brutal é ser a própria Grécia o símbolo cristalino da caricatura que se tornou a Democracia, advento seu. O "governo do povo", a imposição da vontade da maioria, o próprio conceito de cidadania, a Democracia, enfim, veio sendo modificada, casuística e deliberadamente, até nos tornarmos isso. Essa criatura disforme, passiva, conformada, convencional, que comemora suicídios seguidos de sinceridade em nome da saúde do nada.