5 de dez. de 2010

Autopsicografia #12





Mas vou limpar a mente.
Sei que errei... Errei inocente.

(Cartola)

Sobre uma excitação bairrista suspeita


Ando com uma estranha tendência otimista.

A sensação de vitória, a frágil percepção de que estou no centro do mundo, tudo me seduz a pintar o tal futuro brilhante.

Quando olho em volta, percebo: é um fenômeno carioca.

Acho que todos os cariocas estão vivendo sob a embriaguez da vitória do bem, da redenção, da salvação.

De uma hora pra outra a polícia já não é corrupta e o Rio é seguro o suficiente pra Olimpíadas, abertura de Copa e o que mais vier. Flamengo e Fluminense são capazes de serem campeões brasileiros, rompendo um período negro de desconfiança e coadjuvância - ao meu xará Ubaldo, sempre - do futebol carioca. (E eu, botafoguense que sou, posso dizer, com uma certa ironia, que testemunhei meu time debulhando ambos num torneiozinho regional. Mas isso, além de provocação, não é assunto pra ser discutido agora).

Pois é, mais do que viver no país do futuro, tenho a impressão de que estamos num frenesi coletivo que nos leva a crer que vivemos na cidade do momento.

De fato, as circunstâncias são favoráveis.

De fato, o futebol carioca, embora muito mais endividado e desestruturado do que deveria, mostra sua força, sempre.

De fato, o confronto era necessário e as consequências são positivas - ainda que, entre as apreensões, não haja menção a ouro, dinheiro, joias e uns 300 homens armados.

De fato, o Rio é a cidade mais linda do mundo, e isso nos tolhe um pouco em nosso senso crítico.

Mas percebo também que, inebriados pela coreografia da prosperidade e levados pelo bom vento da mudança (bom, ainda que quente), vamos nos bastando balneário e nos esquecendo de que sempre fomos uma das principais fontes irradiadoras de cultura do mundo.

Presos na armadilha irracional dos critérios escusos de distribuição privada do dinheiro público, seguimos bebendo cerveja na porta, pagando meia, quando muito, e assistindo à esquizofrenia cíclica das falências instantâneas de casas de show recém-inauguradas e de artistas recém-nascidos.

Aí, quando vemos figuras-símbolo da cultura contemporânea do Rio anunciando que se mudarão pra São Paulo, achamos estranho.

É natural.


21 de nov. de 2010

Sobre a Consciência Negra



It's a country in which each region has its own music, each region has its things to say, each region is different to the other, but there's a communion and everybody can find common ground.

Começo mais um exercício aparentemente inútil - ainda que um tanto prazeroso - de reflexão, com a constatação de que vivo num país cujas relações raciais sofrem de uma certa esquizofrenia. No Dia da Consciência Negra, folgamos todos, mas brancos apenas folgamos, enquanto negros comungamos, entre nós negros apenas, nossas parcas conquistas e nossos vastos anseios.

Cabe explicar que eu somos branco e também somos negro porque eu sou de apenas uma raça, a Humana. Esse é o único fim possível, ainda que sejam legítimas e fundamentais todas as iniciativas de se minimizar agora o enorme fosso racial, desde que com a clara intenção de encurtar o acesso a este fim idealizado. Convenhamos, tal fim só será possível quando as oportunidades não estiverem atreladas à cor da pele.

Enquanto vivemos o processo, celebramos a negritude nua dos carnavais e escondemos sob as batinas de nosso falso moralismo as feridas por cicatrizar. Tem sido assim desde que, pelo menos oficialmente, deixamos de nos permitir pertencer uns aos outros. Seguimos perpetuando a mentira da tolerância.

Bem mais do que folga ou comunhão, o Dia da Consciência negra devia servir para nos despirmos. E aqui estou, nu, percebendo que a escravidão, a devassidão, a insubordinação, a violência, a ganância, a exploração e tanto mais nos trouxeram até aqui. Nos trouxeram até o samba, por exemplo.

Num breve silogismo: eu devo muito ao samba; o samba deve muito à África; eu devo muito à África.

Pois bem, a citação em inglês lá de riba é em inglês porque foi dita em inglês e isso não é um desrespeito ao samba. Esta citação está em um CD de música estrangeira, porque também se faz músicas além das fronteiras do nosso país, e isso tampouco é um desrespeito ao samba. Neste CD, dois excelente músicos tocam seus instrumentos de corda que não são de samba, e talvez nem mesmo soubessem que hajam cavaquinhos e violões de sete cordas, e isso, de maneira alguma, é um desrespeito ao samba.

O samba é um pouco meu, e é hoje a coisa de que mais me orgulho. Mas, ao cabo do mundo, o samba é uma expressão entre tantas de uma região entre tantas de um país entre tantos em um mundo sabe-se lá entre quantos mundos em que se façam música.

E justamente por isso acho que todos deveríamos ouvir um artista africano nos Dias da Consciência Negra porvir, para não perdermos de vista o quanto nosso país é jovem, o quanto nosso samba é ao mesmo tempo causa e consequência, o quanto são discretos nossos quelóides se comparados aos cânceres morais e raciais de que sofre a África desde muito antes de haver brancos e negros no que viria a se chamar Brasil.

O CD em questão é "Ali and Toumani", os artistas em questão são Ali Farka Touré e Toumani Diabaté e o país em questão é o Mali.


19 de nov. de 2010

Autopsicografia #11






Por dentro, com a alma atarantada,
Sou uma criança, não entendo nada.

(Erasmo Carlos & Roberto Carlos)

16 de nov. de 2010

Sobre o natal



Se meu esporte predileto é argumentar, discutir sobre religião é a copa do mundo do meu esporte. Em qualquer outra inútil competição retórica, há paradigmas clamando por desconstrução; aqui há dogmas. Inatingíveis e incontestáveis que são, os dogmas são um convite irrecusável a qualquer viciado por contradições como eu.


Este pleito que se trava entre mim e os dogmas ganha ares épicos quando meu fiel interlocutor - fiel por ter fé em um Deus qualquer, meus interlocutores dificilmente têm fé em mim - toma conhecimento do desapego íntimo que nutri toda a vida por qualquer representação institucional religiosa - ainda que, nas curvas da "vida madura", meu ceticismo nem sempre resista à minha sensibilidade (ou à minha insegurança). Entenda: não comprei nenhum dos rostos que se me foram apresentados como sendo de Deus, mas creio em Algo, assim mesmo, com maiúscula, só por birra.

Pois bem, se sob o manto inexpugnável do meu Santo Algo não estão Pai, Davi, Oxalá, Krishna, Maomé, Filho ou Espírito Santo, o que dizer de um velho, barrigudo, que usa roupas de pele - aparentemente animal - apesar do calor e esconde o rosto atrás de uma barba branca - quase sempre falsa - como se fosse um foragido? O que dizer de pinheiros canadenses de plástico cobertos de neve sintética nas portarias dos prédios de Bangu?

O natal é triste e ridículo. E sempre foi.


(Esta seria a íntegra de um texto meu sobre o natal há alguns anos. Agora cabe um epílogo:)


...ridículo. E sempre foi.

Mas a decoração de natal da minha casa está linda. Meu filho vai adorar quando acordar.


Sabe, às vezes é bom envelhecer. Envelhecer e perceber que, afinal, o natal me interessa, pelo simples fato de que promove a liturgia rara dos encontros.

15 de nov. de 2010

Autopsicografia #10





Saudade que eu sinto...
De tudo que eu ainda não vi
.

(Renato Russo)

27 de out. de 2010

Sobre mentiras

Caros, não pretendia falar de política aqui, neste enfadonho e obsoleto veículo do nada. Mas meus argumentos não cabem em 420, muito menos em 140 caracteres, portanto...

Ao contrário dos candidatos à presidência, eu não sou economista. Sou medíocre em matemática. Ainda assim fiz essa pequena pesquisa usando apenas dados oficiais (todos disponíveis na internet), depois de ver Mr. Burns dizer que:

(1) o dólar a um valor tão baixo desfavorece o exportador brasileiro;
(2) vai aumentar o salário mínimo para R$ 600,00 já no ano que vem.

A respeito do primeiro absurdo: Não foi o FH que criou a tão sonhada paridade cambial (R$ 1 = US$ 1)? Aliás, não foi ele que manteve esta mentira para se tornar o primeiro presidente reeleito da história (claro, a reeleição foi uma das manobras mais casuístas da política brasileira) às custas de um aumento sem precedentes de nossa dívida pública (e mais um favorzinho do FMI)?

Sobre o segundo absurdo, seguem os números:

FH assumiu o país com um salário mínimo de R$ 70,00 (À época havia a tão propagandeada paridade cambial, ou seja, SM de US$ 70);

Aplicando-se a inflação de 1995 até 2002, esse salário deveria ser de R$ 136,00 ao cabo de seu governo;

FH saiu do Planalto com um salário mínimo de R$ 200,00. Um aumento real (descontada a inflação do período) de 35% em oito anos (a cotação do dólar em dezembro de 2002 era de R$ 3,60, ou seja, FH assumiu o país com um SM de 70 dólares e entregou o país com um SM de... 55 dólares).

Em contrapartida...

Lula assumiu o país com um salário mínimo de R$ 200,00 (os tais 55 dólares), e assumiu também um compromisso de levá-lo a 100 dólares (ainda lembro dos risos de oposição e opinião pública);

Aplicando-se a inflação de 2003 até 2010 (arredondei a estimativa para esse ano para 5%, para cima), esse salário deveria ser de R$ 310,66 ao cabo de seu governo;

A não ser que haja uma hecatombe financeira e cambial, Lula entregará o governo com um SM de 510,00, mais ou menos o dobro de aumento real. Ah, o tal dólar baixo demais (vamos dizer que o ano feche com o dólar a R$ 1,80, ainda que esteja hoje a R$ 1,72 mais ou menos) faz com que esse salário mínimo seja de US$ 283,33.

Eu não ganho salário mínimo. Você provavelmente não ganha salário mínimo. Mas fazemos, você e eu, parte de um país com muitos problemas e que só vai poder enfrentá-los quando promover, de fato, a justiça.

Sem um entusiasmo transbordante, mas com bastante convicção: é 13.

28 de ago. de 2010

Sobre minha própria ignorância


Exatamente agora, no jornal O Globo de hoje - não o hoje de quem lê este post, mas o meu hoje quando escrevo - tem este mesmo texto. Sou o colunista convidado da semana da Revista, e aproveitei o espaço oferecido pra me expor em minha suprema ignorância e meu supremo preconceito. Ainda que tecnicamente já seja domingo... shabat shalom!


Fui alfabetizado pelo meu avô. Líamos atlas e mapas cobertos de poeira e repletos de mistério. Desde então, convivo com uma pequena alergia e com um vício: me interesso pelo mundo.

Quando fui tragado pela música, no meio de um universo de inseguranças, me seduzia a perspectiva de viajar trabalhando. De ver como eram o cheiro dos nomes, a cor das estatísticas, o som dos monumentos que eu conhecera nos livros.

Confesso que a vinda do meu filho arrefeceu o ímpeto de ir cada vez mais longe e por mais tempo, mas, ironia do destino, foi justamente o que aconteceu desde sua anunciação. Com o Casuarina conheci, nos últimos dois anos, algumas cidades do mundo. Reiterei convicções, desfiz outras tantas.

No início do ano fomos convidados pela embaixada brasileira em Israel para tocar em Tel Aviv em junho. Mais uma oportunidade de levar a música que fazemos para além de nossas próprias fronteiras e nos alimentar de novos sons, cores e cheiros.

Em 31 de maio, o exército israelense atacou um navio turco que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza. A abordagem covarde resultou em muitas mortes e escandalizou qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade. Gaza é, sim, controlada pelos radicais beligerantes do Hamas, mas há crianças por lá. E Israel impõe, contrariando a ONU, um terrível bloqueio de recursos vitais àquele lugar.

O ataque criou dois grandes argumentos para que pensássemos em cancelar a viagem: a iminência de uma nova intifada fazia com que nossas famílias temessem por nossas vidas (ainda que os números da segurança pública no Rio sejam bem piores do que os do conflito palestino); além disso, costumamos ter cuidado com as consequências políticas das escolhas que fazemos, e em casos como esse a reação ao alcance do artista é não ir.

Fomos. Porque somos profissionais. E porque éramos convidados da embaixada do nosso país. País cuja diplomacia me orgulha por optar sempre pela paz. Mantemos relações de maneira isenta e equânime com Israel e com seus inimigos políticos. Não por acaso, o Itamaraty condenou veementemente o ataque.

Fomos. Mas fomos tensos.

Em tão pouco tempo não conheci muito do lugar onde estava, mas conheci um pouco mais a mim mesmo. Acho que voltei de Israel um pouco menos ignorante. Se Tel Aviv parece ter uma maioria bem-vestida e mal informada, em contrapartida conheci pessoas brilhantes, progressistas, sionistas orgulhosos que fazem oposição ao governo e têm, inclusive, a convicção de que a única saída pra esse imbróglio secular é a consolidação do território Palestino.

Os estereótipos são muito cruéis. Logo eu, brasileiro, que não sou Tarzan e não moro em Buenos Aires, a tal capital do Brasil, cometi o erro primitivo de que, em geral, sou vítima. Há judeus de todos os tipos, pra todos os gostos, alinhados com quaisquer tendências políticas. Há judeus ateus, não-judeus, não-árabes. Há gente bonita, gente feia, gente engajada e gente alienada. Fundamentalmente, há fundamentalismo, mas há senso crítico. Nem todo israelense é Netanyahu, como nem todo palestino é Arafat como ensina a velha cartilha da velha esquerda.

O show foi descontraído, leve, delicioso para nós – e a julgar pela reação da plateia, para todos. Antes de embarcarmos de volta, tivemos um dia em Jerusalém, de onde ninguém sai ileso. Até mesmo eu, que não tenho ligação formal com nenhuma religião, fiquei impressionado com a densidade das energias que convergem pra esse lugar. Quando entrei no Santo Sepulcro pensei no meu avô, católico, que me deu acesso às letras, me emprestou o interesse pelo mundo e me educou segundo a ética cristã. Chorei por ele como Cristo, pra ele, morreu por nós. E me reaproximei dos deuses. Fomos. Queira Jeová, voltaremos a Israel. E, queira Maomé, poderemos então ir à Palestina.


Sobre razões e propósitos



Qual a razão de ser de um telefone? Qual o propósito de um rádio?

Um telefone serve pra que duas pessoas se falem à distância; um rádio tem o propósito de permitir que pessoas ouçam o que outras pessoas dizem.

Telefones e rádios param de funcionar, ou, ainda que continuem funcionando, são substituídos por outros telefones e rádios mais modernos, e, então, o propósito e a razão de ambos será acumular poeira.

Até que alguém, muitos anos depois, acha esse telefone e esse rádio que, apesar de ultrapassados, são peças que remetem a uma época e despertam a memória afetiva de quem os viu serem, respectivamente, telefone e rádio.

Serão vendidos como relíquias, mais caros do que costumavam custar quando eram telefone e rádio.

Como se pode observar, assim como telefones e rádios, quase tudo que há no mundo tem uma única razão e um único propósito de ser. Outras razões e outros propósitos são possíveis, mas, em geral, chegam para substituir as razões e propósitos que os precederam.

Digo quase tudo porque no último ano pude constatar que a razão e o propósito da vida de um pai é maior do que a razão e o propósito da vida de um homem. Sempre tive múltiplas razões e múltiplos propósitos pra viver e, desde o nascimento do meu filho, todas elas passaram a ser ele. É o único estranho e extremo caso em que uma razão-propósito é retroativa. Tudo pelo que passei nos vinte e nove anos em que estive alheio à paternidade parece ter a razão-propósito de me trazer até aqui, pai, com uma única razão-propósito de viver.

Tudo que digo, tudo que não digo, o que já escrevi neste blog e, fundamentalmente, o que não escrevi durante esse primeiro ano da vida de meu filho, têm a razão e o propósito de fazê-lo feliz.

Mas, como esse blog não quer ser vendido mais caro como relíquia... ressucitá-lo-ei.