19 de mai. de 2014

Sobre as Convenções



Eu creio na beleza, sempre cri.

Mesmo sabendo que a beleza é apenas mais uma convenção, como quase todas as coisas. Como Deus. Como a morte, até, vai saber.

Por ser pessoal e abstrata - além de convencional - a “minha” beleza está constrita na frágil e limitadíssima compreensão que tenho das coisas. É difícil achar bonito o que não se entende. Não há código para decifrar beleza que se esconda pela ignorância de quem (não) a vê.

Por isso mesmo continuo crendo na beleza, como se fosse Deus, enquanto tento entender um pouco mais das coisas para ir afrouxando as amarras que a ela imponho.

Tenho a música por ofício. E paixão. Fui criando, nessa dialética confusa que travo com a música, minhas próprias convicções a respeito dela própria e de mim. E, como de costume, só sobra a beleza. Uma beleza que, como fui percebendo, é supra genérica, transgeracional, plurirrítmica e mais quantos neologismos (ou não) sejam necessários para demonstrar que: embora limitada, ela é maior do que as mesquinhas prateleiras preconceituosas da minha cabeça (de)formada sistematicamente por muitas outras convenções.

É por isso que choro quando vejo Dori Caymmi cantando “apenas” com seu violão e me arrepiei quando ouvi pela primeira vez Karina Buhr cuspir verdades ruidorrágicas na minha cara. Assumi meu compromisso com a multifacetada beleza, convenção tão minha, não com as siglas, os rótulos e as nomenclaturas criados por outros, balizamentos arbitrários e não menos convencionais.

E beleza não dá bolor.


27 de set. de 2013

Sobre um Gosto Amargo



Houve um tempo em que o subúrbio, esse que tem Jesus mas está de costas, não era pauta. Não era consumível, não era consumidor. Não era assunto. Tinha lá seus hábitos (porta aberta, cadeira na calçada. Graças a Deus!) que eram ignorados pelos "remediados do além-túnel". Eu entre eles, diga-se.

O subúrbio cresceu. Geográfica e economicamente. E, como era de se esperar, a formalidade institucional deixou de dar de ombros e passou a crescer os olhos praquelas bandas. Pelos potenciais proveitos, não por anseios inclusivos, é claro.

Ainda assim parecia bom.

Mas, como era de se supor, a moral central é avassaladora. Ignora vicissitudes, ignora culturas, ignora a diversidade. Não importam as distâncias, os seres-humanos ainda não conseguimos nos livrar da lógica colonialista-extrativista.

Dentro da dinâmica mercadológica de apropriação (expropriatória) da linguagem do subúrbio, o Deus neopentecostal, espécie de endemia suburbana, embranqueceu, enriqueceu e ganhou representação política.

E, o mais incrível, foi esse próprio Deus que trouxe consigo, de volta ao subúrbio, munido de seu caráter emergente, sua retórica arrogante e sua falta de respeito para com o que lhe é distinto, uma série de preconceitos (criminosos) contra patrimônios culturais do próprio subúrbio. Com o endosso editorial escancarado dos barões.

Não sou irresponsável de estimular práticas, ainda que culturalmente estabelecidas, que ofereçam risco ou causem desconforto a outras pessoas. Claro que não. Sonho com uma comunidade em que se pense muito mais no espaço do outro. Mas o jeito paternalista, marginalizante e exclusivamente repressivo com que a oficialidade estado-mídia impõe suas vontades é digno de uma cidade ainda partida. Talvez ainda mais partida do que antes das UPPs e da Emenda 013.

Pois bem, assitindo o RJTV de hoje, percebi que o demônio já foi o cerol, o demônio já foi a cangalha, o demônio já foi o proibidão. Hoje não. Nesse dia de Cosme e Damião, estabeleça-se um marco anti-sincrético: o demônio ficou doce. Do-do-doce, doce.


3 de ago. de 2013

Sobre o Império da Guanabara



Não é o governador fascista, não é o prefeito playboy, não é o empreiteiro mafioso, não é o coronel corrupto, não é o miliciano sádico, não é o traficante infanticida, não é o inseto do transporte, muito menos o motorista ensandecido.

É o privilégio.

Façamos a mea culpa, nós cariocas somos viciados em privilégio. Eternamente VIPs, signatários de primeira hora da lei de Gérson. A regra para os outros, para nós os aplausos ao sol no Arpoador.

Abençoados por Deus, bajulados pelo Papa e privilegiados por natureza, somos o mais fértil terreno para os despachantes, as listas amigas e as carteirinhas falsas de estudante. Mesmo assim, nada disso nos interessa: queremos de graça.

E é por isso que aqui, no balneário do meu pirão primeiro, a classe política e a polícia militar - esses, sim, privilegiados por vergonhosas leis que os protegem da justiça dos demais - são assim tão debochados.

É urgente que tenhamos coerência. O momento é histórico mas de nada adiantará se não percebermos, olhando através de nosso próprio umbigo, que já não temos a corte.

Temos o corte.

Usemos.


3 de jul. de 2013

Sobre a Sociossismologia Empírica Aplicada



E se formos nós o terremoto?

Os governos, é claro, são as placas tectônicas. Às voltas com sua própria sensação de estabilidade, não estão especialmente preocupados em acompanhar a velocidade das vontades e das forças alheias a si. Às vezes se jogam uns de encontro a outros e eventualmente tremem sem saber por que.

O foco sísmico é feito dos movimentos sociais organizados. Têm a volúpia do ruído - jamais se permitem silenciar. Mas a repercussão do que dizem é uma incógnita: grande parte das vezes, seu desejo de mexer com as placas dispersa nos interstícios repressivos e burocráticos das próprias placas que, assim, os contêm com pouco esforço.

Os militaristas, moralistas e fascistóides, a pé, de carro ou caminhão, são uma falha, como a de Santo André. Prometem rachar a Califórnia mas bradam muito mais do que mordem. Ademais, seu ímpeto sanguinolento é mais hormonal do que coordenado.

O epicentro certamente é civil, desorganizado e, embora incomodado, esteve ocupado demais recentemente com seus afazeres superficiais para dar atenção aos atritos escondidos nas vergonhas da crosta. De repente foi sacudido.

E as instituições são tudo o que fora construído sobre o solo. Quão mais firmes forem, mais firme resistem às vicissitudes das placas. Não importa se rachem, fissurem ou quebrem as rochas dos governos, as instituições bem construídas não se abalam. Por outro lado, mesmo onde as placas deitam eternamente em berço esplêndido é possível caírem rebocos de viadutos em cabeças inocentes.

Mas a beleza está unicamente no paradoxo de que só se ouvem os movimentos íntimos da Terra quando as súplicas fogem às entranhas e se propagam em difusas ondas de choque. No decorrer do caminho, aquele grito uniforme, concentrado, proposital e propositivo vai ficando mais alto, mais abrangente e menos inteligível - e é quando a intenção de reacomodar placas parece detalhe frente à capacidade destrutiva do sismo.

E só assim, com recorrentes tremores de legitimidade duvidosa, vamos destruir e reconstruir uma dúzia de vezes nossos prédios até que se perceba que precisam ser melhores e mais estáveis para que sobrevivam às egolatrias narcisistas das pedras.


3 de jun. de 2013

Sobre o Epitáfio de um Arquibaldo



Em 1994 o Brasil ainda reaprendia a engatinhar sob a luz da democracia. No dia 1º de março, exatamente trinta anos depois do golpe que prendera e torturara a república, mais um plano mirabolante para conter a inflação era implementado. Desconfiávamos, depois de tantos fracassos.

Se hoje não se admite 40% de inflação ao ano, em 1994 era 40% ao mês. O Cruzeiro Real, tão novo, já apodrecera. Seria transformado transitoriamente em URV (Unidade Real de Valor) para, por fim, em 1º de julho, dar lugar ao Real. A taxa de conversão não era simples: CR$ 2.750,00 = R$ 1,00. E tome calculadora atrás da orelha do padeiro.

Tinha eu 14 anos de idade àquela altura, e ia sozinho ao Maracanã (e ao Glorioso estádio de Caio Martins), desde os 13. Como eu nunca sabia quanto era o ingresso dos jogos lá ia eu, de ônibus - não havia metrô aos domingos -, com meu saco cheio de dinheiro.

Naquela quarta-feira de dezembro, entretanto, o Real já era real. Já sabíamos que o ônibus custava R$ 0,35. Ayrton Senna já havia morrido e causado a maior comoção já vista no país. Pouco depois, o Brasil foi tetracampeão e houve uma comoção ainda maior (com direito a um abraço de urso de Pelé em Galvão que entortaria pra sempre a armação de seus óculos).

O Botafogo, depois de uma campanha excelente, jogaria contra o Atlético-MG pelas quartas-de-final do Brasileirão. Ganháramos duas vezes deles durante o campeonato, mas um regulamento tosco, com repescagem, nos havia posto de frente novamente. O preço: exorbitantes R$ 6,00. Calculadora em punho, inflação domada, eu sabia que devia custar R$ 3,70. Mas o "efeito tetra" tinha inflacionado o futebol, pensei eu.

Fui ao jogo. Peguei um troco aqui, uma moeda lá e fui. Levei um sanduba de casa porque o valor da entrada não me permitia gastar R$ 0,50 no já clássico chugatinho-de-filé-miau. O Botafogo ganhou o jogo mas caiu pro Galo no saldo de gols - um infeliz chamado Éder tinha acabado com o jogo do Mineirão.

Ainda assim, esse jogo inauguraria um período de quase dois anos em que eu não deixei de assistir in loco a um jogo sequer do Botafogo no Rio. Fomos campeões em 1995 e eu vivi intensamente aquela campanha. Antes de sermos campeões, recuperamos nossa sede histórica de General Severiano e foi lá, na conquista do título, que tomei meu primeiro porre de uísque - com respaldo e patrocínio da minha mãe.

Quase vinte anos depois:

- O ônibus custa 3 Reais (mais de 700% de aumento, contra menos de 300% de inflação acumulada);

- O metrô custa um pouco mais do que isso e continua levando de lugar nenhum a nenhum lugar - agora também aos domingos;

- A inflação continua em pauta;

- O Rio tem um Engenhão que custou R$ 380 milhões (ou 1 trilhão de Cruzeiros Reais) e foi interditado por problemas estruturais menos de seis anos depois;

- O Maracanã consumiu três Engenhões (ou 3 trilhões de Cruzeiros Reais) em sua descaracterização. Em seguida teve seu lucro privatizado. Ainda assim parece não cumprir as exigências do COI e, provavelmente, vai passar por novas reformas antes das Olimpíadas;

- O prefeito acredita fazer parte do Clube da Luta;

- Minha irmã pagou R$ 170 (ou 467 mil Cruzeiros Reais) pela meia entrada de um jogo amistoso no Maracanã;

- O chugatinho foi proibido para favorecer os cartelistas do interior do estádio;

- E seis reais não compram nem água no "novo Maracanã".


Eu, que fui centenas de vezes ao Maracanã, fui expulso do meu habitat. Como tenho sido expulso da minha cidade, sistematicamente.

Se estivesse lá, arquibaldo que sou, teria vaiado a seleção ao final do jogo, cumprindo meu dever cívico de torcedor-cidadão. Mas a vaia não é bem-vista no novo Maracanã e nos nossos novos protocolos de futebol elitizado - europeu no custo, jurássico no serviço.

Ah, que belo balneário. Pena ter sido arrendado e não aceitar mais índios como eu.


22 de mar. de 2013

Sobre a Teoria da Relatividade



Não faço parte do grupo dos que matam. Se quando criança não fazia parte do grupo dos que batiam, não haveria de me tornar parte do grupo dos que matam. São cruéis os que matam, eu não.

Se bem que mato as formigas que sobem pelos meus braços. Mato afogadas as que chafurdam nos restos da louça suja. Os mosquitos, quando não eletrocutados em uma espécie de tênis macabro, mato aos tapas - e aproveito para dar vazão aos meus mais profundos anseios autoflagelativos. Baratas eu prefiro matar com armas químicas. Baratas têm entranhas demais. Só as mato quando invadem meu espaço e, ainda assim, apenas por não tolerar tê-las por perto. Quando as vejo pela rua, tenho mais repugnância de suas entranhas em minha sola do que delas próprias. Moscas eu gostaria de matar com crueldade, mas moscas são ágeis.

Vou reformular a mim mesmo, pois: Não faço parte do grupo dos que matam, mas admito abrir exceção aos insetos que transmitem doenças ou põem em risco a minha saúde e de minha família. É legítima defesa.

Se bem que agora há pouco, enquanto tomava banho, vi uma aranha. Daquelas de corpo miúdo e pernas desproporcionais. Talvez por reflexo, não sei, talvez por maldade, juntei as mãos, enchi de água e joguei na aranha com força. Ela virou um desenho no azulejo. Uma caricatura de aranha. Num lapso de razão, no momento seguinte me arrependi de ter feito isso à aranha. Aranhas não são insetos. E não transmitem doenças. Pelo menos não as miúdas de pernas desproporcionais. Não mais de dois segundos depois - o tempo de um remorso de aranha - lá estava eu, novamente entretido com os afazeres do banho. Enquanto enchia a mão com xampu anti-caspa, uma janela remissiva de remorso me fez voltar os olhos novamente para a aranha e, para minha surpresa, ela voltara a andar, sem sinais de seqüela. Fiquei aliviado. Aranhas não transmitem doenças, aliás, aranhas miúdas de pernas desproporcionais não transmitem doenças. Elas só aproveitam o resquício de umidade que preservamos do espaço que era delas, originalmente.

Mesmo não a tendo matado, devo admitir: houve dolo. Não é lesão corporal, é tentativa de homicídio. E qualificada pela crueldade e pela impossibilidade da vítima de se defender. Posto isso, autoreformulo-me novamente: Não tenho pudores em matar invertebrados.

Se bem que tenho apreço pelas borboletas. São lindas, graciosas, coloridas. Até o jeito desengonçado de voar das borboletas me parece agradável. Não digo o mesmo das mariposas, ainda que não as mate. Mariposas são cinzas, quem quer que as tenha desenhado, mudou o modo do desenho para grayscale e concordou com discard color information. E são noturnas, e são lúgubres as mariposas. Mas não as mato. E admiro suas primas solares, as borboletas. Apenas depois de deixarem de ser lagartas, é claro.

É, não posso generalizar. Não sou um assassino indiscriminado de invertebrados.

Se bem que adoro comer lulas, polvos, mexilhões, caranguejos, lagostas e camarões. E, salvo engano, crustáceos e moluscos também são invertebrados. Faz muito tempo que deixei a escola, mas acho que são, sim. Não os mato pessoalmente, mas os como. É como se fosse eu o pretexto pra que os matassem. Um cúmplice com pudores pra matar mas muitíssimo disposto a se refastelar com o produto da matança.

Antes de revisar novamente a definição de homicida em que melhor me encaixo, preciso confessar que não me alimento apenas de vegetais e invertebrados. Como, com prazer e freqüência, peixes, aves e até mamíferos. Talvez eu esteja precisando de uma pequena dose de auto-indulgência. Não posso ser cúmplice dessas mortes apenas pelo fato de terem como consquência e produto essas carnes que devoro. Faço uso de um dos argumentos-chave da ideologia corrupto-burguesa: se eu não comesse, alguém comeria.

Certo, careço de pudores para matar - ou me deliciar com a morte, o que é praticamente a mesma coisa - quase qualquer animal silvestre ou criado com o específico fim de alimentar a mim e aos meus. Nunca toleraria matar animais domésticos.

Se bem que já tive que sacrificar um cachorro. Por mais que minha opinião sobre eutanásia não esteja formada, sou o mandante dessa morte. Não houve sofrimento, foi uma morte serena e em tempo mas, de fato, não aceitamos eutanásia para pessoas, porque aceitamos para cães? Diga-se ainda que pessoas têm a seu serviço a consciência e a linguagem, que permitem a elas expressar, voluntária e objetivamente, o desejo de morrer. Pra piorar meu próprio veredicto, confesso que comi cavalo defumado no interior da França. E gostei.

Mesmo sem ter certeza quanto à minha responsabilidade nessas mortes todas, mesmo sem saber ao certo se sou um assassino frio de artrópodos, moluscos, aves, peixes e mamíferos - domesticados ou não -, posso afirmar, sem medo, que não mato pessoas. Pronto, agora tenho um grupo que me representa, o dos que não matam pessoas. 

Se bem que, levando-se em consideração que a responsabilidade pela morte não está ligada de forma sine qua non à ação de matar, como controversamente demonstrado acima, acabo por ter minhas dúvidas.

Vivo em um mundo em que se morre de fome. Se morre de sede e de calor. Se morre de uma nova enchente antes mesmo de se poder parar de morrer aos poucos pela enchente passada. Se morre de faca, se morre de bala, se morre de míssil. Coronel Mostarda com o castiçal na biblioteca. Se morre de doença que uma gota preveniria. Se morre de tédio e de desgosto. Se morre depois de tanto verbo. Se morre sem querer e se morre sem querer, querendo. E mesmo se morrendo assim, aos borbotões, eu não estava lá. Não estava lá pra desviar o Titanic, pra sabotar o Enola Gay, pra demolir os muros da boate e fazer o sol nascer mais cedo na Candelária. Não estava lá, estava aqui. Escrevendo sobre as mortes que promovi e sobre as que não evitei. Estava aqui, morrendo aos poucos.

E sendo cúmplice.


28 de jan. de 2013

Sobre o louco


Que venha o louco. Outro louco.

Não é de mortos, mas de loucos que carecemos.

E que, enquanto vivo, ele distribua amor e gentileza.

E que, depois de morto, continue nos ensinando, o louco.

Choro enquanto escrevo porque creio que virá o louco.

E porque creio que se há Deus ele é a vida da flor que nasce nos cacos do espelho.



Não há poesia que substitua a clareza prática das responsabilidades humanas. E a perplexidade não se cura, mesmo com toda a poesia que houver no mundo.

28 de out. de 2012

Sobre Heróis


Meu avô foi um meio de transporte. Rápido, seguro, estável. Me alfabetizou sozinho e bem cedinho, imortal que era. Não me levava a um lugar, preferia mostrar o caminho dos sonhos. Debruçados sobre Barsas viajávamos para onde queríamos de quantos mundos quiséssemos. E era de lá que víamos tudo, ao vivo e em cores: preto e branco.

Morreu de cirrose sem nunca ter bebido, porque tem coisas que só acontecem ao Botafogo.

Convivemos por oito anos e a impressão que tenho é que guardei apenas memórias suas até sua morte. Foi a figura central da formação do que eu seria até o nascimento dos meus filhos, figuras centrais da transformação que eu sofreria.

José Maria Cavalcanti de Albuquerque nasceu no Rio, em 27 de outubro de 1912. No mesmo dia, na mesma cidade, foi inaugurado o bondinho do Pão de Açúcar.

Que honra para o bondinho.


O grisalho com Garrincha, Amarildo e cia.
Com Didi, Quarentinha, Nilton Santos e cia.
À beira do campo, com Saldanha e a comissão técnica.
O herói.

12 de set. de 2012

Sobre o desfile cívico


Eu não acredito em países. Países são arbitrários. O Brasil, por exemplo, é um território qualquer, determinado, quase todo ele, por um acerto político e uma dúzia de assinaturas. O Acre não, o Acre foi comprado.

É claro que, conforme passa o tempo, vamos nos cercando de uma compreensão, ora cínica ora genuína, de que, por pertencermos a um mesmo país, partilhamos alguns interesses fundamentais que justificam nos sentirmos parte de um mesmo país. Mesmo quando outros seres desse país parecem nem sequer serem humanos, achamos que apenas nós, do mesmo país que eles, devemos julgá-los. Nosso sentido de país é severamente ferido quando um "filho da pátria", por mais bastardo que sejam (o filho e a própria pátria) é achincalhado além das fronteiras (imaginárias, quase todas) de nosso país.

A cultura, afinal, é o que nos torna mais patrióticos. Seja na forma como nos manifestamos artisticamente, seja quando escolhemos um esporte para praticar e um subseqüente jeito de praticá-lo, nos sentimos definitivamente um país. Em nome da identidade cultural de um país, ignora-se, inclusive, quantas diferentes identidades pode haver em 8 milhões e meio de quilômetros quadrados. Ignora-se, mais ainda, com quantas outras identidades de quantos outros arbitrários países, podemos nos identificar de forma autônoma - enquanto, na calada da noite, nos vendem de maneira compulsória outras identidades como sendo nossas.

Por isso tudo, sinto um desconforto frente a todas as manifestações injustificadas de ufanismo. Termos como "soberania nacional" e "pátria livre" me causam ojeriza, é inevitável. Não que eu seja, por isso, um mau brasileiro. Não passo incólume às conquistas, muito menos às mazelas desse meu país. Torço pro meu país. (Ora, torço avidamente pro Botafogo, também um não país ainda mais arbitrário e que também tem no front uns quantos cretinos - conheço alguns, inclusive.)

Agora percebam: à sombra desse "orgulho de ser brasileiro" se escondem nossos fantasmas paternalistas cristãos, responsáveis por não conseguirmos fazer desse nosso não país, de fato uma nação. Uma sociedade como a nossa, que tem o degredo, a chacina e a migração forçada por matéria-prima; a dissimulação e a corrupção por ingredientes fundamentais; e a vantagem sobre todas as coisas por objetivo., para se sentir - e de fato ser - uma nação, tinha que ser formada não por pessoas, mas por países.

Assim, nós, países, não confundiríamos Estado com religião. Poderíamos até ter predileção por alguma maneira de tocar em Deus - ou não -, mas jamais nos permitiríamos ignorar as demais, o que dirá desrespeitá-las.

Nós, países, sempre assumiríamos o preceito da reciprocidade em nossas políticas externas. A vantagem, se não for pra todos os países, simplesmente não é.

Nós, países, elegeríamos de forma democrática qual é a melhor entre as escolhas possíveis, suscetíveis que somos ao erro, e sensíveis que somos ao conserto.

E, sobretudo, nós, países, nos permitiríamos interagir, interdepender e interrelacionar com quantos dos 200 milhões de países que há nessa fronteira abstrata desse nosso não país quiséssemos. E com quantos entre os 7 bilhões de países que há nesta enorme Nação Humana conseguíssemos. Sempre respeitando a história e a importância de cada país, cientes que deveríamos ser da fragilidade volátil dos países que somos.

Pois há apenas uma certeza: países morrem.

20 de ago. de 2012

Sobre a cópia


Perceba que a música é uma linguagem. Os gêneros, sub-gêneros e manifestações específicas de cada região são como idiomas, dialetos, gírias. Um sistema complexo de comunicação que permite influências múltiplas, reinterpretações e até hermetismos - dos alquímicos ou dos inacessíveis, tanto faz.

Considere que, numa análise mais alegórica, a música pop surgiu como o Esperanto. Um idioma híbrido que assume uma parte dos signos radicais dos outros idiomas que o formam para se comunicar através de novas palavras, nesse caso rítmicas, poéticas, harmônicas e melódicas. Ao contrário do Esperanto, entretanto, que foi estruturalizado a priori, o conceito de música pop foi tornando-se uma abstração que se presta a determinar a posteriori aquilo que não se enquadra no estruturalismo formal dos outros idiomas. Não à toa, o Esperanto é um tentativa bem-intencionada e mal-sucedida, enquanto a música pop, em não sendo nada, apenas é.

Por não ser nada, não há muitas pessoas que a defendam. Há pouquíssimas pessoas que se autodenominam pop sem culpa e as que o fazem em geral são vistas com desconfiança por seus pares - ainda que muitos deles sejam músicos pop enrustidos, disfarçados sob uma máscara legitimadora qualquer entre as muitas disponíveis.

É claro que, sem o pop - agora não só a música -, não haveria os memes, essas células mínimas virais de comunicação que transcendem idiomas e que são tão fundamentais para o esteio sócio-cultural da globalização. É bom que haja signos além dos obstáculos. Dois pontos seguidos de fecha parêntesis viraram um sorriso. Um sorriso pop-multilinguístico. Sorriso não distingue idiomas.

Posto isso, quero esclarecer que nada tenho contra a música pop, até por acreditar que ela não seja. Meu primeiro disco solo, prestes a ser lançado, muito possivelmente será rotulado por alguns como… pop. E isso não me causa desconforto (não posso me incomodar com algo que não é, ora). Com o perdão do clichê, sou um entusiasta do multiculturalismo, da pluralidade e, sobretudo, da transigência.

Mas - e agora vem o objeto de fato desse devaneio -, antes de qualquer outra coisa, sou obcecado pela autenticidade. E, em um mundo pautado por interesses comerciais, é mais barato, mais fácil e mais eficiente reproduzir velhas fórmulas do que criar novas. Assim é feito com refrigerantes, com desodorantes. Assim vem sendo feito com a música. Desse jeito a música pop deixa de ser aquele balaio heterogêneo de não-outras-coisas para ser sinônimo daquilo que já foi testado, massificado e aceito incondicionalmente e que, por conveniência, será reproduzido à exaustão.

"Então temos que ser originais o tempo todo?", pergunto-me. Claro que não. Mas não seria nada mau se tentássemos sê-lo. Na qualidade de músico/jornalista, acredito que o artista deveria buscar ser original como o jornalista deveria buscar ser verdadeiro. Ainda que a originalidade e a verdade sempre estejam filtradas, uma pelo que já absorvemos, outra pelas teses que defendemos. Eventualmente copiamos e mentimos sem querer.

E quando copiamos por querer?

Ninguém se incomoda se o funk-hit-coringa que se reproduz incessantemente às nove seja absolutamente igual a um outro em que o cantor maria-vai-com-as-outras só dançaria se sua musa fizesse o mesmo. Ninguém percebe que, na era pós-Tchan, se você quiser um tchu; quiser um tcha; quiser um tchu tcha tcha tchu tchu tcha tchuru e, em seguida vier o Gustavo Lima com você tcherêrê tchê tchê tcherêrê tchê tchê, você terá um canção, apenas. Ou finge não se incomodar. Ou finge não perceber. Ou, ainda, percebe e se incomoda, mas expõe para uma dúzia, enquanto as percebidas e incômodas reproduções comunicam com milhões através de emissoras de rádio e televisão que, embora públicas, vendem o espaço que lhes concedemos.

E seguimos, medindo nosso progresso pelos números da economia. Nossa educação através de IDEBs, ENEMs e afins. Até porque senso crítico não se mede. Não se avalia. E, pior: pra efeito de mercado, não se deseja.

5 de abr. de 2012

Sobre o Nada



Às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão. Convém dizer que, em geral, de fato estão. Mas não me refiro ao idioma-ferramenta de que faz uso o mundo inteiro e sim à expressão idiomática que sugere a ininteligibilidade de uma mensagem. Lima Barreto até tentou, mas enquanto o javanês não serve a tal propósito, às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão.


Pois bem, a comentarista, bem brasileira, falava em alto e bom grego que - repare a ironia - devíamos comemorar por ter a Grécia escapado de uma debandada maciça dos especuladores internacionais ao aprovar um pacote ultrarreacionário de austeridade monetária. Pela tese, o arrocho evitou o calote, que evitou a exclusão do país da zona do euro, que evitou uma recessão ainda maior na UE que se alastraria mundo afora tornando ainda mais fedorenta a já apodrecida economia mundial (na prática o calote foi apenas substituído por uma moratória consentida, mais comportada e elegante, mas não conte pra ninguém).


A tese, por si só, tem um alto nível de greguicidade já que ninguém sabe ao certo como se comportam essas gigantescas e nebulosas instituições do mundinho das finanças. Mas o que me chamou a atenção foi a notícia por trás da tese: um aposentado grego, falido e mal pago depois do anunciado aperto, decidiu se matar, deixando claro em um bilhete que o faria por não admitir catar comida no lixo.


Ou seja, a despeito do suicídio do aposentado, temos que comemorar. Comemorar porque o governo grego sentou o sarrafo no seu próprio povo duas vezes, ao aprovar o tal programa de austeridade e ao reprimir violentamente as manifestações contrárias a ele, aplacando assim a voracidade dos credores da Grécia e adiando um pouco a inevitável bancarrota do país. Ora, temos ou não temos o que comemorar?


Ignora a comentarista, e parecemos ignorar todos que o credor não tem rosto. O credor não tem nome. É tudo uma abstração, o dinheiro, o empréstimo, o calote. Até a Grécia é uma abstração. E, afinal, no frigir dos ovos, não seríamos apenas um grupo de pessoas produzindo, deliberando e decidindo para si, desde o início? Devemos a quem e por que razão devemos? Não sabemos. O aposentado tinha rosto. E nome.


A ironia brutal é ser a própria Grécia o símbolo cristalino da caricatura que se tornou a Democracia, advento seu. O "governo do povo", a imposição da vontade da maioria, o próprio conceito de cidadania, a Democracia, enfim, veio sendo modificada, casuística e deliberadamente, até nos tornarmos isso. Essa criatura disforme, passiva, conformada, convencional, que comemora suicídios seguidos de sinceridade em nome da saúde do nada.



2 de abr. de 2011

Sobre Saltos e Sobressaltos

Eu não sabia quem era Cibele Dorsa. Continuo sem saber quem foi Gustavo Scarpa. Até o tão falado Doda eu sei vagamente quem é.

Mas de uma coisa eu tenho certeza:

É constrangedor como se constroem sub-celebridades aos borbotões, calcadas apenas na sensualidade frágil e, às vezes, – como nesse caso – numa suposta semelhança física com alguém, de fato, famoso;

Independentemente das razões que levaram a isso, é inconcebível que haja mães privadas de ter contato com seus filhos, por mais desequilibradas que sejam as mães e por mais poderosos que sejam os tutores;

Não há nada que simbolize mais a loucura das pessoas pela notoriedade, ainda que a troco de nada, do que uma suicida que manda um teaser do suicídio pelo twitter e uma carta de despedida para uma revista de celebridades;

Mas eu continuo tendo uma única certeza e não é nenhuma das afirmações acima.

As afirmações acima são elucubrações minhas, apenas minhas, que de tão minhas seriam um tremendo atestado de pernosticismo se eu as considerasse certezas.

Tampouco é minha única certeza o fato de que, a exemplo de um outro caso já deliberado neste espaço confuso de devaneios vãos, esse caso resvala muito sutilmente no meu escopo de interesses, não sendo, por si só, capaz de me motivar a escrever alguma coisa a seu respeito.

Minha certeza solitária é que o único absurdo verdadeiro de todo este caso é ter havido censura à revista Caras. Não tenho o menor interesse por nenhum dos personagens desse pseudoescândalo, tenho ainda menos vontade de ler a carta de suicídio, mas me dá náuseas saber que algum juiz consentiu que se proibisse uma revista – seja ela qual fosse – de publicar um nome – seja ele qual for.

Um palpite à revista Caras: já que, por ordem judicial, vocês estão impedidos de publicar o nome do Doda, aquele que eu sei vagamente quem é mas sei que é casado com a Athina Onassis – ironicamente herdeira de uma das maiores fortunas do mundo –, publiquem na próxima edição, na capa, em letras garrafais, o nome do juiz que sentenciou tal absurdo, para que possamos todos cobrar dele uma atitude condizente com um estado democrático.

29 de mar. de 2011

Sobre o Bolsonaro



Se você, assim como eu, não quer um boçal da qualidade do Bolsonaro te representando, mande um e-mail para a Comissão de Direitos Humanos da Câmara (cdh@camara.gov.br) e deixe isso claro.

Nunca percamos de vista que somos nós a fazer com que se mudem as leis, e só com uma pressão legítima, popular e coletiva, vamos conseguir que se criminalize qualquer tipo de intolerância.

Redija sua própria carta! A minha foi assim:

"Me chamo João, não sou negro, não sou homossexual, mas me sinto profundamente ofendido em saber que um dos meus representantes na câmara é uma pessoa anacrônica e fascista como Jair Bolsonaro.

Peço à Comissão que dê início imediatamente aos procedimentos de cassação do deputado, indigno que é do cargo que ocupa. Não é tolerável, à essa altura, que haja políticos que não compartilhem e respeitem um dos patrimônios fundamentais da sociedade brasileira: a diversidade.

Atenciosamente,

João Cavalcanti."

18 de mar. de 2011

Sobre o Brazil

Há palavras que carregam consigo o fardo de significarem o que nem sempre pretendem significar. Palavras que são julgadas pelo que parecem ser fora de contexto, talvez por serem mais comuns em uma determinada circunstância do que em outra, talvez por estarem historicamente ligadas a fatos que, de tão marcantes, sobrepujam a relatividade necessária a análise das conjunturas momentâneas.

“Repressão”, por exemplo, soa aos ouvidos de qualquer pessoa sensata como uma ação ruim. É uma palavra que se enquadra nos dois cenários descritos acima: é muito mais usada para descrever circunstâncias ruins do que boas e ainda nos remete a períodos negros da nossa história recente. Mas qualquer ser humano, mesmo aquele que prefere não transpor a superficialidade das palavras, exercita diariamente, sem moderação, a auto-repressão. A auto-repressão é o único mecanismo confiável e viável que nos permite conviver em um caldo tão heterogêneo quanto uma comunidade de distintos. É através dela – e por causa dela – que não nos matamos uns aos outros o tempo inteiro, e isso é bom. – ou não?

De mesmo modo e efeito contrário, a palavra “reforma” parece ser um pouco mais boa do que ruim. Reformar algo, quase sempre, é atualizar alguma coisa em seu tempo, pôr em uso algo que estava fora de funcionamento ou revitalizar um objeto obsoleto ou em mau estado. Apesar disso há reformas que são feitas em nome da tal “atualização” mas respondem a interesses suspeitos, há reformas que têm intenção boa mas conseqüências discutíveis e há reformas que têm conseqüências boas mas motivações embaraçosas.

As reformas políticas que acontecem no seio do mundo desenvolvido, por exemplo, são feitas em nome do bem estar comum. Salvo raras exceções, essas reformas mudam as fórmulas de arrecadação das previdências sociais de cada país, aumentando o tempo de serviço do cidadão comum enquanto governos emprestam dinheiros a bancos e grandes corporações a pretexto de “evitar crises”. É um exemplo de uma reforma com pretexto nobre e interesse escuso;

A Reforma Protestante, por sua vez, parecia, em sua época, uma iniciativa iluminada que tornaria mais acessível aos fiéis uma liturgia que se havia distanciado deles, de tão engessada que se tornara. Tinha tudo a ver com o sentido íntimo da palavra Religião (outra daquelas com julgamento superficial), ligar de maneira mais profunda o Divino e o Humano. Entretanto, entre as inúmeras doutrinas que se desdobraram desse movimento inicial, há algumas que são ainda mais reacionárias, inacessíveis e dogmáticas do que o catolicismo contra o qual protestam. É um exemplo de reforma bem intencionada com efeito duvidoso;

As reformas por que passa a cidade do Rio para a chegada do presidente americano, por outro lado, me deixam profundamente envergonhado. E o fato de os cariocas – muito influenciados por um senso comum massivamente divulgado pela mídia formal – embarcarem nesse embuste me causa ainda mais náuseas. Uma cidade da dimensão da nossa, com a importância e a relevância da nossa, mais uma vez, arria as calças para receber um figurão “do estrangeiro”. É mais uma manifestação patética de subserviência e complexo de inferioridade de uma cidade que, em seu cotidiano, não parece se preocupar com os 16 milhões de figurões que a tornam real diariamente.

Yes, we could.

9 de mar. de 2011

Sobre o Carnaval II



Alheia às avaliações suspeitas e aos sorrisos falsos que promovem mentiras e ajudam a emoldurar o carnaval entre décimos e tabelas coloridas, Dona Ivone Lara deixou a Lapa em transe ontem à noite.

Era incrível a convergência de simbolismos: a principal responsável pela emancipação da mulher num dos ambientes mais machistas que há, no dia internacional da mulher, acompanhada pelo Cordão do Boitatá, ícone do processo de reocupação das ruas pelo carnaval, na reocupada Lapa, encerrando oficialmente a festa. Aliás, desde que a Lapa foi invadida novamente por nós loucos não havia por lá, durante o carnaval, celebração tão bonita, democrática, livre.

Dona Ivone é transcendental. Todos a queríamos ali. E o melhor da história é que ela também parecia querer estar ali. Mas vê-la no palco deflagrou em mim uma usina à beira da implosão, dividido que fico entre a alegria que tal privilégio me causa e a consternação que sinto em saber que, ainda que ela não quisesse estar ali, talvez não lhe restasse tal opção.

Para além de sermos autônomos, os músicos somos criaturas que parecemos trafegar ao largo da oficialidade. Isso até tem algumas vantagens, como a “condescendência de classe”. Mas, ao fim e ao cabo, não se aplicam a nós as leis, e nós ainda não criamos as nossas.

Enquanto isso, ficamos batendo cabeça pelas parcas migalhas dos direitos formais.

Ela sim, de fato e de direito, é a personificação da revolução, do carnaval (há de subir o Império, Dona Ivone!) e da mulher.