28 de ago. de 2010

Sobre minha própria ignorância


Exatamente agora, no jornal O Globo de hoje - não o hoje de quem lê este post, mas o meu hoje quando escrevo - tem este mesmo texto. Sou o colunista convidado da semana da Revista, e aproveitei o espaço oferecido pra me expor em minha suprema ignorância e meu supremo preconceito. Ainda que tecnicamente já seja domingo... shabat shalom!


Fui alfabetizado pelo meu avô. Líamos atlas e mapas cobertos de poeira e repletos de mistério. Desde então, convivo com uma pequena alergia e com um vício: me interesso pelo mundo.

Quando fui tragado pela música, no meio de um universo de inseguranças, me seduzia a perspectiva de viajar trabalhando. De ver como eram o cheiro dos nomes, a cor das estatísticas, o som dos monumentos que eu conhecera nos livros.

Confesso que a vinda do meu filho arrefeceu o ímpeto de ir cada vez mais longe e por mais tempo, mas, ironia do destino, foi justamente o que aconteceu desde sua anunciação. Com o Casuarina conheci, nos últimos dois anos, algumas cidades do mundo. Reiterei convicções, desfiz outras tantas.

No início do ano fomos convidados pela embaixada brasileira em Israel para tocar em Tel Aviv em junho. Mais uma oportunidade de levar a música que fazemos para além de nossas próprias fronteiras e nos alimentar de novos sons, cores e cheiros.

Em 31 de maio, o exército israelense atacou um navio turco que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza. A abordagem covarde resultou em muitas mortes e escandalizou qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade. Gaza é, sim, controlada pelos radicais beligerantes do Hamas, mas há crianças por lá. E Israel impõe, contrariando a ONU, um terrível bloqueio de recursos vitais àquele lugar.

O ataque criou dois grandes argumentos para que pensássemos em cancelar a viagem: a iminência de uma nova intifada fazia com que nossas famílias temessem por nossas vidas (ainda que os números da segurança pública no Rio sejam bem piores do que os do conflito palestino); além disso, costumamos ter cuidado com as consequências políticas das escolhas que fazemos, e em casos como esse a reação ao alcance do artista é não ir.

Fomos. Porque somos profissionais. E porque éramos convidados da embaixada do nosso país. País cuja diplomacia me orgulha por optar sempre pela paz. Mantemos relações de maneira isenta e equânime com Israel e com seus inimigos políticos. Não por acaso, o Itamaraty condenou veementemente o ataque.

Fomos. Mas fomos tensos.

Em tão pouco tempo não conheci muito do lugar onde estava, mas conheci um pouco mais a mim mesmo. Acho que voltei de Israel um pouco menos ignorante. Se Tel Aviv parece ter uma maioria bem-vestida e mal informada, em contrapartida conheci pessoas brilhantes, progressistas, sionistas orgulhosos que fazem oposição ao governo e têm, inclusive, a convicção de que a única saída pra esse imbróglio secular é a consolidação do território Palestino.

Os estereótipos são muito cruéis. Logo eu, brasileiro, que não sou Tarzan e não moro em Buenos Aires, a tal capital do Brasil, cometi o erro primitivo de que, em geral, sou vítima. Há judeus de todos os tipos, pra todos os gostos, alinhados com quaisquer tendências políticas. Há judeus ateus, não-judeus, não-árabes. Há gente bonita, gente feia, gente engajada e gente alienada. Fundamentalmente, há fundamentalismo, mas há senso crítico. Nem todo israelense é Netanyahu, como nem todo palestino é Arafat como ensina a velha cartilha da velha esquerda.

O show foi descontraído, leve, delicioso para nós – e a julgar pela reação da plateia, para todos. Antes de embarcarmos de volta, tivemos um dia em Jerusalém, de onde ninguém sai ileso. Até mesmo eu, que não tenho ligação formal com nenhuma religião, fiquei impressionado com a densidade das energias que convergem pra esse lugar. Quando entrei no Santo Sepulcro pensei no meu avô, católico, que me deu acesso às letras, me emprestou o interesse pelo mundo e me educou segundo a ética cristã. Chorei por ele como Cristo, pra ele, morreu por nós. E me reaproximei dos deuses. Fomos. Queira Jeová, voltaremos a Israel. E, queira Maomé, poderemos então ir à Palestina.


Sobre razões e propósitos



Qual a razão de ser de um telefone? Qual o propósito de um rádio?

Um telefone serve pra que duas pessoas se falem à distância; um rádio tem o propósito de permitir que pessoas ouçam o que outras pessoas dizem.

Telefones e rádios param de funcionar, ou, ainda que continuem funcionando, são substituídos por outros telefones e rádios mais modernos, e, então, o propósito e a razão de ambos será acumular poeira.

Até que alguém, muitos anos depois, acha esse telefone e esse rádio que, apesar de ultrapassados, são peças que remetem a uma época e despertam a memória afetiva de quem os viu serem, respectivamente, telefone e rádio.

Serão vendidos como relíquias, mais caros do que costumavam custar quando eram telefone e rádio.

Como se pode observar, assim como telefones e rádios, quase tudo que há no mundo tem uma única razão e um único propósito de ser. Outras razões e outros propósitos são possíveis, mas, em geral, chegam para substituir as razões e propósitos que os precederam.

Digo quase tudo porque no último ano pude constatar que a razão e o propósito da vida de um pai é maior do que a razão e o propósito da vida de um homem. Sempre tive múltiplas razões e múltiplos propósitos pra viver e, desde o nascimento do meu filho, todas elas passaram a ser ele. É o único estranho e extremo caso em que uma razão-propósito é retroativa. Tudo pelo que passei nos vinte e nove anos em que estive alheio à paternidade parece ter a razão-propósito de me trazer até aqui, pai, com uma única razão-propósito de viver.

Tudo que digo, tudo que não digo, o que já escrevi neste blog e, fundamentalmente, o que não escrevi durante esse primeiro ano da vida de meu filho, têm a razão e o propósito de fazê-lo feliz.

Mas, como esse blog não quer ser vendido mais caro como relíquia... ressucitá-lo-ei.