30 de abr. de 2009

Sobre o porco louco


Eu tenho um melhor amigo argentino. Pra que fique claro, mesmo com a infeliz construção da sentença, não apenas o melhor entre meus amigos argentinos mas o argentino entre meus melhores amigos.


Um dia, no auge da gripe aviária, à época temida e já caminhando a firmes passos para a incontrolabilidade (parafraseando meu xará Ubaldo, não no termo, mas no que se segue a ele: perdoem-me), meu melhor amigo argentino me ofereceu um dólar pra cada pessoa que morresse a partir de então em consequência da proto-pandemia (ops!) anunciada. Imaginei que meu melhor amigo argentino teria problemas para me pagar a pequena fortuna a que eu teria direito, conquanto não fosse, eu mesmo, uma das vítimas galináceas.

É provável que ele me deva uns poucos dólares, um montante sem expressão - a não ser que se o converta em pesos, com o perdão da infâmia - mas nunca fui cobrar a tal dívida, um pouco por preguiça de consultar os números oficiais e muito por perceber, ainda que de maneira tardia, que o desafio era simbólico.

Hoje, como eu já esperava, meu melhor amigo argentino me ligou ofrecendo um dólar para cada óbito em consequência da gripe suína, a contar a partir do 500º, digamos assim, uma margem de segurança.

Caso eu sobreviva à pandemia, de maneira nenhuma eu porco, digo, perco:

Cenário 1 - Controla-se a gripe, salva-se a humanidade, e meu melhor amigo argentino guarda seus dólares para uma nova lua-de-mel no Caribe;

Cenário 2 - Morrem milhares, milhões de pessoas, o planeta aproveita o peso (não o argentino, aquele que se mede em toneladas) que se lhe tiram das costas, e eu fico rico às custas de um pobre melhor amigo argentino.

Nesse ínterim, continuo procurando alguém que me ofereça um dólar por cada pessoa que morra em consequência da maior doença do mundo: a fome.

Segundo a ONU, 25 mil pessoas morrem de fome por dia e quase um bilhão de pessoas não come o número de calorias necessário a uma pessoa adulta para que se mantenha saudável. Um salário de respeito, 750 mil dólares mensais.

É de se questionar, posto isso tudo, porque não se comovem os jornais, as tevês, os especialistas, as populações, enfim, a parafernália, frente a circunstâncias tão desoladoras e a perdurar por tanto tempo.

Com a sabedoria exclusiva das mães, decreta minha Rainha: a fome não é contagiosa.

O jantar está servido.

20 de abr. de 2009

Autopsicografia #8





I'll send an S.O.S. to the world...
I hope that someone gets my message in a bottle.

(Sting)

Sobre o que é responsabilidade


Como se não bastasse responsabilizar o usuário pelo tráfico, o tubarão pelas pernas que abocanha e o pobre por continuar sendo pobre, ontem, saindo do Maracanã - um tanto cabisbaixo, confesso, conquanto o destino do mundo ainda esteja por se decidir - fui testemunha de uma das mais espetaculares distorções de que se tem registro.


Sou Botafogo, sempre fui, sempre serei e, por isso mesmo, meus sentimentos arquibáldicos são, digamos assim, calejados. Sofro sim, choro também, mas meu mau humor dura coisa de horas, não mais que isso. Mas essa cena, protagonizada por um pai, um filho e um policial militar (oxalá fosse um espírito santo), não me pareceu repulsiva por causa de minha condição de derrotado ou, muito menos, de aspirante a pai. Talvez de humano.

Às portas do Maracanã (traseiras, é claro, é a parte que nos cabe neste latifúndio), durante a descida do rebanho, abriu-se um clarão. Típico de saída melancólica, muito provavelmente um arrufo entre correligionários alvinegros sofrendo de cabeçaquentite aguda - não seria exatamente uma surpresa, entretanto, se a balbúrdia fosse obra da tropa inimiga avançada, não satisfeita com a vitória, sedenta por sangue.

Pra mim, nada daquilo era novo. Depois de vinte anos de assiduidade, sei os atalhos e os procedimentos. Mas, um pouco adiante, lá estavam: o filho, no recolher das pálpeberas do arregalar dos olhos, assustado; o pai, abraçando o filho muito mais na intenção de parecer proteger do que de fato proteger (até porque o perigo ia longe e já estava um tanto maior dentro do menino do que à sua volta); e o espírito-de-porco-fardado, que, em um lampejo de suprema covardia, vociferou, dedo em riste, contra o pai, acusando-o de ser... irresponsável.

É, há de ser irresponsável o pai que leva seu filho para um evento cuja censura é livre, cujo fim é o esporte com tudo de bom que a palavra traz consigo, cuja intenção é fazer com que se aproveite, em família, as suadas horas de folga do abençoado domingo nosso de cada semana.

Em contrapartida, temos, na imagem desse bucéfalo da segurança pública, o exemplo-mor da responsabilidade, inoperante que é nas questões que o deveriam interessar (uma vez que interessam a quem lhe paga o salário, grupo do qual, curiosamente, fazemos parte eu, você, o pai e o filho), a dar sermões com ares de supernanny, não se importando que suas palavras, expressões e gestos, sirvam ao despróposito de aumentar a tensão de todos a despeito do arrefecimento da confusão original.

Aproveitando o ensejo, catuco novamente uma feridinha institucional: pra que e a quem serve uma polícia MILITAR?

16 de abr. de 2009

Autopsicografia #7





E agora eu era um louco a perguntar:

'O que é que a vida vai fazer de mim?'

(Chico Buarque & Sivuca)

15 de abr. de 2009

Sobre os pecuaristas de trem


Pessoas são tratadas como gado e ninguém se pergunta, afinal, se o próprio gado é tratado assim. Se o é, com o perdão da anti-redundância irônica, só mesmo as pessoas pra cometerem tamanha desumanidade: As pessoas agredidas feito gado podem fazer exame de corpo de delito, o gado agredido feito pessoas não.


Poucas coisas são tão difíceis de se registrar em vídeo como as manifestações corriqueiras da tal, bem observada, síndrome do pequeno poder. Pois bem, nesta manhã nos fizemos testemunhas da intestemunhável realidade diária de quem é leite desnatado - autorreferência não é crime.

Quem presta serviço a quem? Os sindrômicos, tão desnatados quanto os demais, se divertem com seu próprio sadismo injustificável enquanto os porta-estandartes se omitem e demitem, tão somente. A que preço se põe à venda uma dignidade coletiva?

Na cidade-maravilha-mutante coloca-se ar-condicionado e aumenta-se o grau de truculência em proporcionalidade inversa ao da temperatura.

Sabe o pior? É capaz de o pastor-chefe ser vegetariano.

Madureira chorou
Madureira chorou de dor
Quando a voz do destino
Obedecendo ao divino
A sua estrela chamou
Gente modesta
Gente boa do subúrbio
Que só comete distúrbio
Se alguém os menosprezar
Aquela gente que mora na zona norte
Até hoje chora a morte da estrela do lugar
(Só eu não posso chorar)

(Júlio Monteiro & Carvalhinho)

10 de abr. de 2009

Sobre o desenvolvimento humano


Por que se levar tão a sério? Qual a razão de tamanho medo do ridículo?


É tentador imaginar que a ridiculez é transitória. Quando olhamos pro passado e nos enxergamos patéticos, quase nunca temos a perspicácia de que ainda nos reconheceremos patéticos quando nos observarmos de um ponto de vista futuro.

Os otimistas dirão que essa é a razão da obsessão por crescer, melhorar, improve. Eu direi: não há como escapar, somos todos ridículos. Sempre seremos absolutamente ridículos.

Alexandre, o Grande, é ridículo tanto em Hollywood quanto numa aula de história do ensino médio.

Miró com seus rabiscos, Hitler com seu bigode, Getúlio com seu metro-e-meio, Napoleão com seu cavalo branco, Marley com seus piolhos, todos apaixonadamente ridículos.

E assim seremos, sucessivamente, um pouco menos que ontem, um pouco mais que amanhã, até que, enfim, alcancemos a magnitude da espécie, o derradeiro desapego da velhice, quando, afinal, nada disso mais faz sentido e, em não sendo ridículos tanto quanto não-ridículos, apenas somos.

9 de abr. de 2009

Sobre o mal


Sempre achei que as pessoas se dividissem em dois grandes grupos: os pernósticos e os dissimulados (afora os loucos, é claro).


Minhas obrservações recentes me levaram à constatação de um terceiro grupo, discreto e com assustador coeficiente de crescimento, o grupo dos covardes.


A patologia da covardia acomete em progressão geométrica policiais, políticos, banqueiros e até motoristas de ônibus. Às vezes se manifesta na forma convulsiva psicopática, flagrante nos casos Fritzl, von Richthofen, Nardoni e em tantos outros, mas é nas pequenas demonstrações diárias - em muitos casos confundidas com a já bem observada síndrome do pequeno poder - que explicita, através de seu receptáculo humano, a verdadeira face da crueldade. Tem especial predileção pelos chamados "países em desenvolvimento".

A covardia é o mal. É o mal maniqueísta, o mal cristão, o mal que a oração não redime.

Prazer, me chamo João e sou pernóstico, dissimulado E LOUCO.

7 de abr. de 2009

Autopsicografia #6





Gonna keep on tryin'...

'Till I reach the highest ground.


(Stevie Wonder)

Sobre o arrepio


Ontem, pela primeira vez, escutei o coração do meu filho.


Por mais que me tentem convencer de que eu já o ouvira, percebo agora que não há estetoscópio, doppler, ou qualquer outra parafernália tecnológica capaz de reproduzir o coração do filho que se ouve com o coração do ouvido - ou com o ouvido do coração.

Quando ouvi de minha mulher "ah, isso eu não consigo", pensei, cá com meus botões, que apesar da frustração de não engravidar, não amamentar e, sobretudo, não ver de si nascer o filho, o pai tem o privilégio único e mágico de ouvir com o coração do ouvido o apressado coração daquele precioso pedaço seu.

Foi o maior arrepio até aqui.

Acho que arrepio maior que esse, só quando eu estiver lá, vendo minha Rainha dar a luz (assim mesmo, sem crase).

3 de abr. de 2009

Sobre ser chique


No mundo de onde venho aprendi que de nada me servem os dividendos da conquista se, do alto do Panteão dos vitoriosos, eu não puder exibir orgulhoso a dignidade do processo.


Alguns chamam a isso Ética, outros não.


O fato é que eu não estou pronto pra ver o mundo, melancolicamente, se desapegar do livre mercado, enojado que está do frenesi do consumo. Sou um romântico, e no anacronismo da minha cabeça acreditava nas Revoluções.

Finanças em concordata e há um ex-camarada disposto a emprestar dinheiro à Daslu do mercado financeiro. Há de se ter encurtado sua memória, posto que passara uma encarnação bradando aos ventos o quanto de vida lhe fora sonegado pelo próprio credor de outrora, hoje a emprestar fiado.

Companheiro, aproveite o espetáculo e não espezinhe deles. Não é do nosso feitio. Chique é erradicar a fome.

1 de abr. de 2009

Autopsicografia #5





Tanta coisa que eu tinha a dizer...

Mas eu sumi na poeira das ruas.


(Paulinho da Viola)