22 de mar. de 2013

Sobre a Teoria da Relatividade



Não faço parte do grupo dos que matam. Se quando criança não fazia parte do grupo dos que batiam, não haveria de me tornar parte do grupo dos que matam. São cruéis os que matam, eu não.

Se bem que mato as formigas que sobem pelos meus braços. Mato afogadas as que chafurdam nos restos da louça suja. Os mosquitos, quando não eletrocutados em uma espécie de tênis macabro, mato aos tapas - e aproveito para dar vazão aos meus mais profundos anseios autoflagelativos. Baratas eu prefiro matar com armas químicas. Baratas têm entranhas demais. Só as mato quando invadem meu espaço e, ainda assim, apenas por não tolerar tê-las por perto. Quando as vejo pela rua, tenho mais repugnância de suas entranhas em minha sola do que delas próprias. Moscas eu gostaria de matar com crueldade, mas moscas são ágeis.

Vou reformular a mim mesmo, pois: Não faço parte do grupo dos que matam, mas admito abrir exceção aos insetos que transmitem doenças ou põem em risco a minha saúde e de minha família. É legítima defesa.

Se bem que agora há pouco, enquanto tomava banho, vi uma aranha. Daquelas de corpo miúdo e pernas desproporcionais. Talvez por reflexo, não sei, talvez por maldade, juntei as mãos, enchi de água e joguei na aranha com força. Ela virou um desenho no azulejo. Uma caricatura de aranha. Num lapso de razão, no momento seguinte me arrependi de ter feito isso à aranha. Aranhas não são insetos. E não transmitem doenças. Pelo menos não as miúdas de pernas desproporcionais. Não mais de dois segundos depois - o tempo de um remorso de aranha - lá estava eu, novamente entretido com os afazeres do banho. Enquanto enchia a mão com xampu anti-caspa, uma janela remissiva de remorso me fez voltar os olhos novamente para a aranha e, para minha surpresa, ela voltara a andar, sem sinais de seqüela. Fiquei aliviado. Aranhas não transmitem doenças, aliás, aranhas miúdas de pernas desproporcionais não transmitem doenças. Elas só aproveitam o resquício de umidade que preservamos do espaço que era delas, originalmente.

Mesmo não a tendo matado, devo admitir: houve dolo. Não é lesão corporal, é tentativa de homicídio. E qualificada pela crueldade e pela impossibilidade da vítima de se defender. Posto isso, autoreformulo-me novamente: Não tenho pudores em matar invertebrados.

Se bem que tenho apreço pelas borboletas. São lindas, graciosas, coloridas. Até o jeito desengonçado de voar das borboletas me parece agradável. Não digo o mesmo das mariposas, ainda que não as mate. Mariposas são cinzas, quem quer que as tenha desenhado, mudou o modo do desenho para grayscale e concordou com discard color information. E são noturnas, e são lúgubres as mariposas. Mas não as mato. E admiro suas primas solares, as borboletas. Apenas depois de deixarem de ser lagartas, é claro.

É, não posso generalizar. Não sou um assassino indiscriminado de invertebrados.

Se bem que adoro comer lulas, polvos, mexilhões, caranguejos, lagostas e camarões. E, salvo engano, crustáceos e moluscos também são invertebrados. Faz muito tempo que deixei a escola, mas acho que são, sim. Não os mato pessoalmente, mas os como. É como se fosse eu o pretexto pra que os matassem. Um cúmplice com pudores pra matar mas muitíssimo disposto a se refastelar com o produto da matança.

Antes de revisar novamente a definição de homicida em que melhor me encaixo, preciso confessar que não me alimento apenas de vegetais e invertebrados. Como, com prazer e freqüência, peixes, aves e até mamíferos. Talvez eu esteja precisando de uma pequena dose de auto-indulgência. Não posso ser cúmplice dessas mortes apenas pelo fato de terem como consquência e produto essas carnes que devoro. Faço uso de um dos argumentos-chave da ideologia corrupto-burguesa: se eu não comesse, alguém comeria.

Certo, careço de pudores para matar - ou me deliciar com a morte, o que é praticamente a mesma coisa - quase qualquer animal silvestre ou criado com o específico fim de alimentar a mim e aos meus. Nunca toleraria matar animais domésticos.

Se bem que já tive que sacrificar um cachorro. Por mais que minha opinião sobre eutanásia não esteja formada, sou o mandante dessa morte. Não houve sofrimento, foi uma morte serena e em tempo mas, de fato, não aceitamos eutanásia para pessoas, porque aceitamos para cães? Diga-se ainda que pessoas têm a seu serviço a consciência e a linguagem, que permitem a elas expressar, voluntária e objetivamente, o desejo de morrer. Pra piorar meu próprio veredicto, confesso que comi cavalo defumado no interior da França. E gostei.

Mesmo sem ter certeza quanto à minha responsabilidade nessas mortes todas, mesmo sem saber ao certo se sou um assassino frio de artrópodos, moluscos, aves, peixes e mamíferos - domesticados ou não -, posso afirmar, sem medo, que não mato pessoas. Pronto, agora tenho um grupo que me representa, o dos que não matam pessoas. 

Se bem que, levando-se em consideração que a responsabilidade pela morte não está ligada de forma sine qua non à ação de matar, como controversamente demonstrado acima, acabo por ter minhas dúvidas.

Vivo em um mundo em que se morre de fome. Se morre de sede e de calor. Se morre de uma nova enchente antes mesmo de se poder parar de morrer aos poucos pela enchente passada. Se morre de faca, se morre de bala, se morre de míssil. Coronel Mostarda com o castiçal na biblioteca. Se morre de doença que uma gota preveniria. Se morre de tédio e de desgosto. Se morre depois de tanto verbo. Se morre sem querer e se morre sem querer, querendo. E mesmo se morrendo assim, aos borbotões, eu não estava lá. Não estava lá pra desviar o Titanic, pra sabotar o Enola Gay, pra demolir os muros da boate e fazer o sol nascer mais cedo na Candelária. Não estava lá, estava aqui. Escrevendo sobre as mortes que promovi e sobre as que não evitei. Estava aqui, morrendo aos poucos.

E sendo cúmplice.


Um comentário:

Aline Perantoni disse...

Muito bom! Eu tbm não mato pessoas ou mato...!?!
Leitura deliciosa.
Não conhecia sua página! Parabéns!!!