3 de jun. de 2013

Sobre o Epitáfio de um Arquibaldo



Em 1994 o Brasil ainda reaprendia a engatinhar sob a luz da democracia. No dia 1º de março, exatamente trinta anos depois do golpe que prendera e torturara a república, mais um plano mirabolante para conter a inflação era implementado. Desconfiávamos, depois de tantos fracassos.

Se hoje não se admite 40% de inflação ao ano, em 1994 era 40% ao mês. O Cruzeiro Real, tão novo, já apodrecera. Seria transformado transitoriamente em URV (Unidade Real de Valor) para, por fim, em 1º de julho, dar lugar ao Real. A taxa de conversão não era simples: CR$ 2.750,00 = R$ 1,00. E tome calculadora atrás da orelha do padeiro.

Tinha eu 14 anos de idade àquela altura, e ia sozinho ao Maracanã (e ao Glorioso estádio de Caio Martins), desde os 13. Como eu nunca sabia quanto era o ingresso dos jogos lá ia eu, de ônibus - não havia metrô aos domingos -, com meu saco cheio de dinheiro.

Naquela quarta-feira de dezembro, entretanto, o Real já era real. Já sabíamos que o ônibus custava R$ 0,35. Ayrton Senna já havia morrido e causado a maior comoção já vista no país. Pouco depois, o Brasil foi tetracampeão e houve uma comoção ainda maior (com direito a um abraço de urso de Pelé em Galvão que entortaria pra sempre a armação de seus óculos).

O Botafogo, depois de uma campanha excelente, jogaria contra o Atlético-MG pelas quartas-de-final do Brasileirão. Ganháramos duas vezes deles durante o campeonato, mas um regulamento tosco, com repescagem, nos havia posto de frente novamente. O preço: exorbitantes R$ 6,00. Calculadora em punho, inflação domada, eu sabia que devia custar R$ 3,70. Mas o "efeito tetra" tinha inflacionado o futebol, pensei eu.

Fui ao jogo. Peguei um troco aqui, uma moeda lá e fui. Levei um sanduba de casa porque o valor da entrada não me permitia gastar R$ 0,50 no já clássico chugatinho-de-filé-miau. O Botafogo ganhou o jogo mas caiu pro Galo no saldo de gols - um infeliz chamado Éder tinha acabado com o jogo do Mineirão.

Ainda assim, esse jogo inauguraria um período de quase dois anos em que eu não deixei de assistir in loco a um jogo sequer do Botafogo no Rio. Fomos campeões em 1995 e eu vivi intensamente aquela campanha. Antes de sermos campeões, recuperamos nossa sede histórica de General Severiano e foi lá, na conquista do título, que tomei meu primeiro porre de uísque - com respaldo e patrocínio da minha mãe.

Quase vinte anos depois:

- O ônibus custa 3 Reais (mais de 700% de aumento, contra menos de 300% de inflação acumulada);

- O metrô custa um pouco mais do que isso e continua levando de lugar nenhum a nenhum lugar - agora também aos domingos;

- A inflação continua em pauta;

- O Rio tem um Engenhão que custou R$ 380 milhões (ou 1 trilhão de Cruzeiros Reais) e foi interditado por problemas estruturais menos de seis anos depois;

- O Maracanã consumiu três Engenhões (ou 3 trilhões de Cruzeiros Reais) em sua descaracterização. Em seguida teve seu lucro privatizado. Ainda assim parece não cumprir as exigências do COI e, provavelmente, vai passar por novas reformas antes das Olimpíadas;

- O prefeito acredita fazer parte do Clube da Luta;

- Minha irmã pagou R$ 170 (ou 467 mil Cruzeiros Reais) pela meia entrada de um jogo amistoso no Maracanã;

- O chugatinho foi proibido para favorecer os cartelistas do interior do estádio;

- E seis reais não compram nem água no "novo Maracanã".


Eu, que fui centenas de vezes ao Maracanã, fui expulso do meu habitat. Como tenho sido expulso da minha cidade, sistematicamente.

Se estivesse lá, arquibaldo que sou, teria vaiado a seleção ao final do jogo, cumprindo meu dever cívico de torcedor-cidadão. Mas a vaia não é bem-vista no novo Maracanã e nos nossos novos protocolos de futebol elitizado - europeu no custo, jurássico no serviço.

Ah, que belo balneário. Pena ter sido arrendado e não aceitar mais índios como eu.


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