5 de abr. de 2012

Sobre o Nada



Às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão. Convém dizer que, em geral, de fato estão. Mas não me refiro ao idioma-ferramenta de que faz uso o mundo inteiro e sim à expressão idiomática que sugere a ininteligibilidade de uma mensagem. Lima Barreto até tentou, mas enquanto o javanês não serve a tal propósito, às vezes tenho a impressão de que estão falando grego na televisão.


Pois bem, a comentarista, bem brasileira, falava em alto e bom grego que - repare a ironia - devíamos comemorar por ter a Grécia escapado de uma debandada maciça dos especuladores internacionais ao aprovar um pacote ultrarreacionário de austeridade monetária. Pela tese, o arrocho evitou o calote, que evitou a exclusão do país da zona do euro, que evitou uma recessão ainda maior na UE que se alastraria mundo afora tornando ainda mais fedorenta a já apodrecida economia mundial (na prática o calote foi apenas substituído por uma moratória consentida, mais comportada e elegante, mas não conte pra ninguém).


A tese, por si só, tem um alto nível de greguicidade já que ninguém sabe ao certo como se comportam essas gigantescas e nebulosas instituições do mundinho das finanças. Mas o que me chamou a atenção foi a notícia por trás da tese: um aposentado grego, falido e mal pago depois do anunciado aperto, decidiu se matar, deixando claro em um bilhete que o faria por não admitir catar comida no lixo.


Ou seja, a despeito do suicídio do aposentado, temos que comemorar. Comemorar porque o governo grego sentou o sarrafo no seu próprio povo duas vezes, ao aprovar o tal programa de austeridade e ao reprimir violentamente as manifestações contrárias a ele, aplacando assim a voracidade dos credores da Grécia e adiando um pouco a inevitável bancarrota do país. Ora, temos ou não temos o que comemorar?


Ignora a comentarista, e parecemos ignorar todos que o credor não tem rosto. O credor não tem nome. É tudo uma abstração, o dinheiro, o empréstimo, o calote. Até a Grécia é uma abstração. E, afinal, no frigir dos ovos, não seríamos apenas um grupo de pessoas produzindo, deliberando e decidindo para si, desde o início? Devemos a quem e por que razão devemos? Não sabemos. O aposentado tinha rosto. E nome.


A ironia brutal é ser a própria Grécia o símbolo cristalino da caricatura que se tornou a Democracia, advento seu. O "governo do povo", a imposição da vontade da maioria, o próprio conceito de cidadania, a Democracia, enfim, veio sendo modificada, casuística e deliberadamente, até nos tornarmos isso. Essa criatura disforme, passiva, conformada, convencional, que comemora suicídios seguidos de sinceridade em nome da saúde do nada.



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