
Mas vou limpar a mente.
Sei que errei... Errei inocente.
(Cartola)
Ando com uma estranha tendência otimista.
A sensação de vitória, a frágil percepção de que estou no centro do mundo, tudo me seduz a pintar o tal futuro brilhante.
Quando olho em volta, percebo: é um fenômeno carioca.
Acho que todos os cariocas estão vivendo sob a embriaguez da vitória do bem, da redenção, da salvação.
De uma hora pra outra a polícia já não é corrupta e o Rio é seguro o suficiente pra Olimpíadas, abertura de Copa e o que mais vier. Flamengo e Fluminense são capazes de serem campeões brasileiros, rompendo um período negro de desconfiança e coadjuvância - ao meu xará Ubaldo, sempre - do futebol carioca. (E eu, botafoguense que sou, posso dizer, com uma certa ironia, que testemunhei meu time debulhando ambos num torneiozinho regional. Mas isso, além de provocação, não é assunto pra ser discutido agora).
Pois é, mais do que viver no país do futuro, tenho a impressão de que estamos num frenesi coletivo que nos leva a crer que vivemos na cidade do momento.
De fato, as circunstâncias são favoráveis.
De fato, o futebol carioca, embora muito mais endividado e desestruturado do que deveria, mostra sua força, sempre.
De fato, o confronto era necessário e as consequências são positivas - ainda que, entre as apreensões, não haja menção a ouro, dinheiro, joias e uns 300 homens armados.
De fato, o Rio é a cidade mais linda do mundo, e isso nos tolhe um pouco em nosso senso crítico.
Mas percebo também que, inebriados pela coreografia da prosperidade e levados pelo bom vento da mudança (bom, ainda que quente), vamos nos bastando balneário e nos esquecendo de que sempre fomos uma das principais fontes irradiadoras de cultura do mundo.
Presos na armadilha irracional dos critérios escusos de distribuição privada do dinheiro público, seguimos bebendo cerveja na porta, pagando meia, quando muito, e assistindo à esquizofrenia cíclica das falências instantâneas de casas de show recém-inauguradas e de artistas recém-nascidos.
Aí, quando vemos figuras-símbolo da cultura contemporânea do Rio anunciando que se mudarão pra São Paulo, achamos estranho.
É natural.
Fui alfabetizado pelo meu avô. Líamos atlas e mapas cobertos de poeira e repletos de mistério. Desde então, convivo com uma pequena alergia e com um vício: me interesso pelo mundo.
Quando fui tragado pela música, no meio de um universo de inseguranças, me seduzia a perspectiva de viajar trabalhando. De ver como eram o cheiro dos nomes, a cor das estatísticas, o som dos monumentos que eu conhecera nos livros.
Confesso que a vinda do meu filho arrefeceu o ímpeto de ir cada vez mais longe e por mais tempo, mas, ironia do destino, foi justamente o que aconteceu desde sua anunciação. Com o Casuarina conheci, nos últimos dois anos, algumas cidades do mundo. Reiterei convicções, desfiz outras tantas.
No início do ano fomos convidados pela embaixada brasileira em Israel para tocar em Tel Aviv em junho. Mais uma oportunidade de levar a música que fazemos para além de nossas próprias fronteiras e nos alimentar de novos sons, cores e cheiros.
Em 31 de maio, o exército israelense atacou um navio turco que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza. A abordagem covarde resultou em muitas mortes e escandalizou qualquer ser humano com um mínimo de sensibilidade. Gaza é, sim, controlada pelos radicais beligerantes do Hamas, mas há crianças por lá. E Israel impõe, contrariando a ONU, um terrível bloqueio de recursos vitais àquele lugar.
O ataque criou dois grandes argumentos para que pensássemos em cancelar a viagem: a iminência de uma nova intifada fazia com que nossas famílias temessem por nossas vidas (ainda que os números da segurança pública no Rio sejam bem piores do que os do conflito palestino); além disso, costumamos ter cuidado com as consequências políticas das escolhas que fazemos, e em casos como esse a reação ao alcance do artista é não ir.
Fomos. Porque somos profissionais. E porque éramos convidados da embaixada do nosso país. País cuja diplomacia me orgulha por optar sempre pela paz. Mantemos relações de maneira isenta e equânime com Israel e com seus inimigos políticos. Não por acaso, o Itamaraty condenou veementemente o ataque.
Fomos. Mas fomos tensos.
Em tão pouco tempo não conheci muito do lugar onde estava, mas conheci um pouco mais a mim mesmo. Acho que voltei de Israel um pouco menos ignorante. Se Tel Aviv parece ter uma maioria bem-vestida e mal informada, em contrapartida conheci pessoas brilhantes, progressistas, sionistas orgulhosos que fazem oposição ao governo e têm, inclusive, a convicção de que a única saída pra esse imbróglio secular é a consolidação do território Palestino.
Os estereótipos são muito cruéis. Logo eu, brasileiro, que não sou Tarzan e não moro em Buenos Aires, a tal capital do Brasil, cometi o erro primitivo de que, em geral, sou vítima. Há judeus de todos os tipos, pra todos os gostos, alinhados com quaisquer tendências políticas. Há judeus ateus, não-judeus, não-árabes. Há gente bonita, gente feia, gente engajada e gente alienada. Fundamentalmente, há fundamentalismo, mas há senso crítico. Nem todo israelense é Netanyahu, como nem todo palestino é Arafat como ensina a velha cartilha da velha esquerda.
O show foi descontraído, leve, delicioso para nós – e a julgar pela reação da plateia, para todos. Antes de embarcarmos de volta, tivemos um dia em Jerusalém, de onde ninguém sai ileso. Até mesmo eu, que não tenho ligação formal com nenhuma religião, fiquei impressionado com a densidade das energias que convergem pra esse lugar. Quando entrei no Santo Sepulcro pensei no meu avô, católico, que me deu acesso às letras, me emprestou o interesse pelo mundo e me educou segundo a ética cristã. Chorei por ele como Cristo, pra ele, morreu por nós. E me reaproximei dos deuses. Fomos. Queira Jeová, voltaremos a Israel. E, queira Maomé, poderemos então ir à Palestina.